Literatura, resenhas de livros e dicas de leitura

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Resenha: Declínio de um Homem

Cumprida a meta de leituras de 2020, seguimos lendo! Só não vamos dobrar a meta, nem nada do tipo. Hoje falo sobre “Declínio de um Homem”, de Osamu Dazai, um livro que eu nunca tinha ouvido falar, mas que foi indicação de um amigo meu cujas opiniões respeito muito e que me disse que eu tinha que ler o livro.

E eu tinha mesmo.

A história retrata a vida de Yozo, da infância à vida adulta. O livro é dividido em 5 partes: há um prólogo e um epílogo curtos sob a ótica de um terceiro que teria tido contato com os cadernos escritos por Yozo. Este terceiro abre e fecha o livro, dando algumas opiniões sobre a vida do protagonista. As três partes do meio do livro são justamente os cadernos de Yozo, contando sua vida sob sua própria perspectiva, em primeira pessoa.

Dotado de uma voz autodepreciativa para a narração, o personagem principal conta suas desventuras, desde uma infância oprimida pela figura de seu pai, na qual buscou se encaixar na sociedade (para ele incompreensível), passando pela adolescência / vida estudantil na qual descobre os prazeres da vida e inicia seu declínio e pobreza, culminando na fase adulta permeada de vícios, casos amorosos vãos e tentativas de suicídio.

A história segue uma cadência lógica de eventos para um homem do século XX. Yozo vai para a escola, depois para a faculdade e se envolve com mulheres, até que se casa. Não fosse a condição misantrópica do personagem principal, seria possível acreditar num final feliz.

Para Yozo, porém, cada momento de sua vida é um tormento, custando-lhe estar vivo numa sociedade que não compreende e que lhe oprime em diversos sentidos. Desde a infância, ele se viu obrigado a desenvolver mecanismos de fuga-esquiva para se encaixar no meio social (humor autodepreciativo, palhaçadas e elaboração de uma personalidade pública totalmente divergente de sua própria). Quando estes mecanismos se tornam inúteis, na vida adulta, Yozo se afunda na boemia, prostituição e uso de drogas.

O título original do livro, algo como “desqualificado para ser humano” traduz o sentimento do protagonista em relação a si mesmo. Ele simplesmente não se sente pertencente à humanidade.

A história do livro narra o declínio do personagem principal, como o próprio título em português anuncia, e o faz magistralmente.

OPINIÃO: Assim como Kokoro (Coração), de Natsume Sōseki, este livro não é uma leitura fácil. Não por ser complexo ou lírico demais, mas sim por ser simples e indigesto.

O livro é parcialmente autobiográfico. O autor também tinha diversos problemas com a vida em sociedade e acabou se matando em 1948. É um livro que traz questionamentos de alguém (o autor, no caso) que claramente não conseguia ver qualquer lado bom na vida.

A história traz um ponto de vista de alguém que simplesmente não se encaixa na sociedade, por mais que tente. O leitor se questiona em diversos momentos se Yozo está mesmo tentando se encaixar ou se apenas quer evitar problemas para si. Eu, particularmente, entendo que seja o segundo caso.

O livro é curto, direto e pungente. Faz o leitor pensar e abstrair em diversos momentos da narrativa, por vezes com alguma frase de efeito do personagem principal, por vezes pelo absurdo da situação narrada.

Recomendo a leitura, mas apenas para aqueles que podem / conseguem ler uma história como esta. Acredito que muitos passarão longe pelo pessimismo da narrativa, pela história do autor por trás do livro e pelos questionamentos existencialistas trazidos à baila durante a leitura. Se o momento atual da sua vida não estiver muito bom, pegue outra coisa para ler. Sério.

Terminei de ler este livro faz algum tempo e demorei muito para fazer a resenha. Isto tem um motivo: o epílogo. Ele confunde o leitor. Cria uma possibilidade de negação de toda a narrativa dos cadernos de Yozo e faz o leitor pensar se toda aquela desgraça narrada no livro realmente ocorreu daquela forma.

Isso é genial.

Logo que terminei o livro, não gostei da história nem do estilo narrativo. Após algum tempo, a história tinha me convencido, o estilo narrativo não. Agora, gosto de ambos.

É um livro que cresce dentro de você, para bem ou para mal.

NOTA PARA A LEITURA: 8/10.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Coração / Kokoro (Leituras 2020 – 5/20)

Minha quinta leitura do ano foi Coração (no original japonês: Kokoro), de Natsume Sōseki.

A história do livro gira em torno de dois personagens principais: o Professor (Sensei) e o Eu, personagem indefinido e sem características físicas, que tem o condão de deixar o leitor em primeiro plano para o contato com o personagem mais interessante do livro, o Professor.

No começo do livro, o Eu está de férias escolares numa área praiana quando conhece o Professor, figura misteriosa cujas ações chamam a atenção por destoarem dos costumes sociais padrões esperados. Ele é um misantropo numa sociedade que valoriza muito mais o coletivo do que o indivíduo.

Ao longo do livro, Eu desenvolve uma fascinação quase obsessiva pelo Professor. Ambos desenvolvem uma amizade baseada num contato praticamente diário, enquanto Eu tenta desvendar os mistérios do passado escondido do professor.

Em paralelo à nova amizade com o Professor, a vida pessoal de Eu torna-se mais conturbada com o desenvolvimento de uma doença incurável de seu pai, causando sua ida à casa da família no interior, afastando-se de Tóquio e da vida moderna junto ao professor.

Graças às informações trazidas para mim pela minha amiga que me emprestou este livro (muito difícil de achar em português, inclusive), estudiosa da cultura japonesa e oriental em geral, entendi que o autor atribuiu aos personagens deste livro o espírito da época no Japão. O Professor é a transição do velho Japão feudal para o Japão moderno, por isso se sente deslocado da sociedade como está. Há diversos paralelos como este no livro e ler sob esta perspectiva traz ainda mais profundidade à trama.

OPINIÃO: Kokoro é, sem dúvida, um dos livros mais tristes que já li. Talvez seja o mais triste. E eu achava que o livro que eu escrevi era pra baixo. Ledo engano, comparando com este.

Triste e profundo. Numa trama simples, Natsume Sōseki toca no nervo do leitor com temas como culpa, deslocamento social, solidão e ansiedade. Há muita profundidade na história, não só pela ressignificação ideológica dos personagens, mas pelo modo poético como a história é contada.

Há na leitura, ao longo dos três grandes capítulos do livro, um movimento de distanciamento do Eu. No começo do primeiro capítulo, ele é a figura principal, sendo aos poucos trocado pelo Professor. No segundo capítulo há uma reaproximação ao Eu, logo colocada de lado pelas preocupações com a família e o Professor, agora longe. Por fim, o terceiro capítulo é inteiramente narrado pelo Professor, inexistindo a figura do Eu, totalmente subjugado por uma personagem mais cativante.

Do mesmo modo como em nossas vidas acabamos, às vezes, por deixar de ter opiniões próprias em face de opiniões e dogmas de outros, também no livro vemos esta aniquilação das vontade própria, conforme o Eu se anula perante o Outro.

Um livro denso, complexo e delicado, como flores lindas, porém venenosas. Kokoro te leva para dentro de uma história triste com tanta força que você pode ser afogar.

Cuidado com esta leitura se estiver numa fase difícil da vida. Se você estiver numa fase boa, quando acabar o livro já não estará mais nela. Experiência própria.

NOTA PARA A LEITURA: 10/10.

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

Ao longo de toda a história, Eu tenta descobrir sobre o passado do Professor. Sua vida vai acontecendo durante esta obsessão e ele não percebe que está ausente de sua própria história.

Quando o pai de Eu adoece e ele precisa ir para a casa da família no interior para dar apoio, acaba distanciando-se do Professor, que havia prometido contar sua história algum dia, antes de morrer.

A doença do pai de Eu avança e ele recebe uma longa carta do Professor. Trata-se de um testamento, na qual ele revela sua história como responsável pelo suicídio de seu melhor amigo, o que o assombra desde então, tirando sua vontade de viver.

Por fim, com a morte do Imperador Meiji, o Professor sente que finalmente é sua hora e também se mata, deixando os detalhes de seu passado na carta.

Toda a história do passado do Professor é o que confere a densidade da leitura. Contar aqui seria um desfavor à sua leitura, caso algum dia vocês se aventurem pelas tristes veredas de Kokoro.

Por Rafael D’Abruzzo

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