Literatura, resenhas de livros e dicas de leitura

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Resenha: Declínio de um Homem

Cumprida a meta de leituras de 2020, seguimos lendo! Só não vamos dobrar a meta, nem nada do tipo. Hoje falo sobre “Declínio de um Homem”, de Osamu Dazai, um livro que eu nunca tinha ouvido falar, mas que foi indicação de um amigo meu cujas opiniões respeito muito e que me disse que eu tinha que ler o livro.

E eu tinha mesmo.

A história retrata a vida de Yozo, da infância à vida adulta. O livro é dividido em 5 partes: há um prólogo e um epílogo curtos sob a ótica de um terceiro que teria tido contato com os cadernos escritos por Yozo. Este terceiro abre e fecha o livro, dando algumas opiniões sobre a vida do protagonista. As três partes do meio do livro são justamente os cadernos de Yozo, contando sua vida sob sua própria perspectiva, em primeira pessoa.

Dotado de uma voz autodepreciativa para a narração, o personagem principal conta suas desventuras, desde uma infância oprimida pela figura de seu pai, na qual buscou se encaixar na sociedade (para ele incompreensível), passando pela adolescência / vida estudantil na qual descobre os prazeres da vida e inicia seu declínio e pobreza, culminando na fase adulta permeada de vícios, casos amorosos vãos e tentativas de suicídio.

A história segue uma cadência lógica de eventos para um homem do século XX. Yozo vai para a escola, depois para a faculdade e se envolve com mulheres, até que se casa. Não fosse a condição misantrópica do personagem principal, seria possível acreditar num final feliz.

Para Yozo, porém, cada momento de sua vida é um tormento, custando-lhe estar vivo numa sociedade que não compreende e que lhe oprime em diversos sentidos. Desde a infância, ele se viu obrigado a desenvolver mecanismos de fuga-esquiva para se encaixar no meio social (humor autodepreciativo, palhaçadas e elaboração de uma personalidade pública totalmente divergente de sua própria). Quando estes mecanismos se tornam inúteis, na vida adulta, Yozo se afunda na boemia, prostituição e uso de drogas.

O título original do livro, algo como “desqualificado para ser humano” traduz o sentimento do protagonista em relação a si mesmo. Ele simplesmente não se sente pertencente à humanidade.

A história do livro narra o declínio do personagem principal, como o próprio título em português anuncia, e o faz magistralmente.

OPINIÃO: Assim como Kokoro (Coração), de Natsume Sōseki, este livro não é uma leitura fácil. Não por ser complexo ou lírico demais, mas sim por ser simples e indigesto.

O livro é parcialmente autobiográfico. O autor também tinha diversos problemas com a vida em sociedade e acabou se matando em 1948. É um livro que traz questionamentos de alguém (o autor, no caso) que claramente não conseguia ver qualquer lado bom na vida.

A história traz um ponto de vista de alguém que simplesmente não se encaixa na sociedade, por mais que tente. O leitor se questiona em diversos momentos se Yozo está mesmo tentando se encaixar ou se apenas quer evitar problemas para si. Eu, particularmente, entendo que seja o segundo caso.

O livro é curto, direto e pungente. Faz o leitor pensar e abstrair em diversos momentos da narrativa, por vezes com alguma frase de efeito do personagem principal, por vezes pelo absurdo da situação narrada.

Recomendo a leitura, mas apenas para aqueles que podem / conseguem ler uma história como esta. Acredito que muitos passarão longe pelo pessimismo da narrativa, pela história do autor por trás do livro e pelos questionamentos existencialistas trazidos à baila durante a leitura. Se o momento atual da sua vida não estiver muito bom, pegue outra coisa para ler. Sério.

Terminei de ler este livro faz algum tempo e demorei muito para fazer a resenha. Isto tem um motivo: o epílogo. Ele confunde o leitor. Cria uma possibilidade de negação de toda a narrativa dos cadernos de Yozo e faz o leitor pensar se toda aquela desgraça narrada no livro realmente ocorreu daquela forma.

Isso é genial.

Logo que terminei o livro, não gostei da história nem do estilo narrativo. Após algum tempo, a história tinha me convencido, o estilo narrativo não. Agora, gosto de ambos.

É um livro que cresce dentro de você, para bem ou para mal.

NOTA PARA A LEITURA: 8/10.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Serpentário (Leituras 2020 – 20/20)

Concluindo minha meta de 20 livros “resenháveis” (embora até o momento tenham sido 36 livros ao todo este ano, quem quiser conferir dá uma olhadinha lá no Goodreads), fecho este “pacote” de resenhas com uma obra nacional: Serpentário, do Felipe Castilho.

Serpentário é um livro que valoriza nossa cultura. A história traz uma boa diversidade em vários aspectos, tentando abraçar a pluralidade cultural do brasileiro.

O livro traz a história de 4 amigos e como eles vivenciaram um terror inimaginável na adolescência, na qual um dos amigos foi deixado para morrer numa situação terrível, o que marcou a vida de cada personagem de forma única.

Narrado sob a ótica de Caroline, a “líder” do grupo de amigos, que nos dias atuais sofre com alucinações causadas pelo trauma, a história traz uma cadência interessante, mesclando o passado e o tempo atual, entrecortado com passagens de outras histórias envolvendo o mistério principal do livro. É uma trama instigante.

Há um pouco de tudo no livro: terror, drama, comédia, referências aos anos 90, nazistas… esta última parte foi a única que não gostei no livro inteiro. Chega de nazistas, gente. Já deu.

OPINIÃO: Não é meu primeiro livro do Castilho, eu já tinha lido “A Ordem Vermelha” e, por isso, Serpentário já chegou para mim com uma expectativa lá em cima. A escrita do autor é muito boa, cheia de analogias bonitas, causando uma imersão bastante agradável.

Os personagens são bem construídos, complexos e parecem verdadeiros. Trazem uma proximidade aos moradores de São Paulo, mas acredito que causem empatia em qualquer leitor pelo modo como a história é construída.

O livro me lembrou muito IT, do Stephen King. Não apenas pelo terror, mas pelo vai-e-vem de tempos narrativos e pela construção de personagens antes e depois. Foi bem agradável ler sob este aspecto também.

Serpentário é um ótimo livro. Não digo isto apenas para valorizar a literatura nacional, mas sim porque é realmente uma ótima história. É para chutar o complexo de vira-lata pra longe.

Existe muita literatura especulativa nacional de qualidade, inclusive terror. Deem uma chance, tenho certeza de que vão descobrir algo incrível.

NOTA PARA A LEITURA: 9/10.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: A Mão Esquerda da Escuridão (Leituras 2020 – 19/20)

Hoje falo sobre “A Mão Esquerda da Escuridão”, de Ursula Le Guin.

Estou para ler algo desta autora há muito tempo já. Esperei uma promoção na Amazon para poder ler o que muitos consideram sua obra mais importante. “A Mão Esquerda da Escuridão” é um livro impactante e, sem dúvida alguma, merece ser lido, ainda mais nos tempos de hoje.

O livro trata das (des)venturas de Genly Ai, um enviado do Ekumen (espécie de Império Galático do Isaac Asimov) que está em Gethen, também conhecido como o planeta Inverno. Esta confusão de nomes logo no início desta resenha já mostra que o livro não é muito fácil de ler no começo. Ao longo, a experiência fica menos pesarosa, mas exige atenção do leitor.

Em Gethen, Genly Ai tem a missão de convencer o planeta a se juntar ao Ekumen. O cerne da história, porém, reside num detalhe interessante sobre os habitantes de Gethen: eles não tem gênero definido. Todos os Gethenianos são assexuados durante todo o tempo em que não estão no kemmer (uma espécie de cio). Durante este período reprodutivo eles podem assumir uma faceta masculina ou feminina. Quando assumem a feminina, podem engravidar e permanecer femininos durante a gestação. Isso criou uma sociedade igualitária em termos de gênero na qual não há violência sexual ou intrigas por interesse sexual. A criação das crianças é obrigação de todos.

Estas reflexões sobre gênero e sexualidade estão diluídas ao longo de uma série de intrigas e aventuras do personagem principal em sua missão de “recrutar” Gethen a participar de uma sociedade interplanetária.

Apadrinhado, ainda que indiretamente, por Estraven, primeiro-ministro de um dos reinos de Gethen, Genly aprende muito sobre a cultura do local e como as características de seus habitantes os ajudam a sobreviver num planeta inóspito no qual a temperatura raramente passa dos 0ºC. Aos poucos, Genly se vê obrigado a colaborar com pessoas que não conhece e não confia para cumprir sua missão, tendo sua própria humanidade colocada à prova.

OPINIÃO: “A Mão Esquerda da Escuridão” traz uma reflexão interessantíssima sobre diversidade de gênero, sexualidade e polarização. Para o leitor, a sensação que fica é que nossos paradigmas foram quebrados aos poucos durante a leitura, com muita classe.

A história, em si, é interessante e move a trama. Mas eu, pelo menos, fiquei muito mais interessado na construção do mundo de Gethen e sua população do que na trama per si. Ursula Le Guin trabalha o texto de uma forma que você se sente descobrindo algo novo a cada capítulo, como uma recompensa.

Porém, a linguagem do livro não é das mais simples. Por vezes a leitura se assemelha mais a um estudo científico do que a literatura de ficção e isto pode cansar alguns leitores que buscam uma leitura mais simples e agradável. Eu era um desses leitores e, por isso, o livro só foi me cativar lá perto da metade. De início, insisti na leitura por saber que trazia uma discussão interessante e, no fim, não me arrependi.

Pretendo ler outras obras desta autora, ainda mais agora sabendo o tipo de linguagem que me espera. Este livro vale muito pela reflexão que traz e, para os que se interessam por uma ficção asimoviana como Fundação, a história geo-política de Gethen também é bastante cativante.

Leitura recomendada, ainda mais em tempos de intolerância, como os nossos.

NOTA PARA A LEITURA: 8/10

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Fahrenheit 451 (Leituras 2020 – 16/20)

Depois de muitos anos na minha lista de leitura, finalmente li Fahrenheit 451 de Ray Bradbury.

“Queimar era um prazer.”

Fahrenheit 451 é um desses livros que você precisa ler uma vez na vida. Primeiro porque é muito bom e, segundo, porque ele inspirou muitas outras histórias por aí (inclusive o próximo livro que resenharei aqui). Ainda que distopia não seja seu gênero favorito, este livro merece sua atenção junto com 1984 e Admirável Mundo Novo (que eu particularmente não gostei, mas isso é assunto pra outra hora). Há quem inclua O Conto da Aia nessa lista também e acho mais que justo.

O livro conta a história de Montag, um bombeiro (fireman) cujo trabalho não é apagar incêndios, mas sim criá-los. Num futuro distópico em que é proibido ter livros, o departamento de bombeiros é responsável por queimar os livros e as casas dos seus proprietários. Aliás, Fahrenheit 451 é a temperatura do ponto de queima do papel.

O problema todo é que Montag acaba fascinado por livros e esconde alguns em seu próprio apartamento, o que move a trama.

No futuro distópico de Fahrenheit 451, a sociedade “evoluiu” ao ponto de não ser necessário ler praticamente nada. O entretenimento é todo providenciado por telas gigantes com programas sem enredo e programas de rádio com propagandas de slogans grudentos. A mulher de Montag é a cria estereotipada deste futuro: vive uma vida vazia, migrando de programa em programa para preencher a ausência de senso crítico. No início do livro ela toma um frasco inteiro de comprimidos e não fica certo se ela desejava se matar ou se apenas se esqueceu de que já tinha tomado um e depois o outro, demonstrando a ausência de pensamentos em sua vida. Montag chega em casa a ponto de chamar ajuda e ela sobrevive, tendo um papel importante a desempenhar no livro.

O próprio Montag vive uma vida (quase) tão vazia até conhecer sua vizinha Clarisse, uma adolescente diferente que o faz refletir logo no início do livro acerca de sua própria condição e estado emocional. Daí pra frente, deixo para vocês a experiência da leitura.

OPINIÃO: Permeado de reflexões sobre felicidade, cultura e emoções, Fahrenheit 451 atinge o leitor como uma pedrada no rosto. Trata-se de uma história densa que faz o leitor até esquecer um pouco de que se trata de uma distopia, já que em muitos momentos a narrativa se torna intimista e reflete problemas de nossa sociedade, como a liquidez das relações, o domínio das massas com entretenimento barato e enviesado e a ausência de controle do indivíduo sobre a sociedade que o cerca.

O estilo narrativo é simples e comum, não causando estranheza ao leitor além do que a trama propõe. O personagem principal é o único com a psique mais explorada, pois é ele quem passa pela transformação da jornada. Os demais personagens são planificados (talvez de propósito), permitindo que o leitor acompanhe a evolução de Montag.

O mundo criado, opressor mas sem a violência exagerada de 1984 ou a dominação camuflada de Admirável Mundo Novo, é assustador por sua própria proposta: um mundo estúpido, sem cultura, vazio e despropositado.

Fahrenheit 451 foi uma leitura muito esperada e não me decepcionou, desde o começo até o final catártico. Recomendo.

NOTA PARA A LEITURA: 9/10

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Os Pilares da Terra (Leituras 2020 – 15/20)

Hoje falo sobre Os Pilares da Terra, de Ken Follet. Uma ficção histórica cheia de reviravoltas.

Os Pilares da Terra é aclamado por muitos como o melhor livro de Ken Follet. Confesso que foi o melhor dele que já li até agora, mas não saberia julgar toda a bibliografia dele, já que só li 3 livros do autor.

Ao longo das quase 1000 páginas do livro, acompanhamos alguns personagens interessantes que retratam as principais classes sociais da época: Philip, um monge, William, um nobre, Tom, um construtor e Aliena, uma comerciante. A história conta, naturalmente, com muitos outros personagens, secundários e terciários, que movem a história para a frente.

A história gira em torno da construção de uma catedral na cidade fictícia de Kingsbridge, na Inglaterra. A vida de todos os personagens são afetadas, direta ou indiretamente pela construção da catedral e isso é colocado de uma forma muito orgânica no livro, que por vezes parece até uma aula de arquitetura.

Por se tratar de um livro “épico”, muitas décadas se passam entre o início e o fim da narrativa e inúmeros eventos mudam a trama a cada momento, fazendo o leitor mergulhar na leitura. Nem parece ter que mil páginas no final das contas.

Conforme a história avança, os personagens amadurecem, evoluem em diversas direções e as relações entre eles também é modificada e o fio condutor da história segue de forma linear, dando ao leitor também uma sensação de satisfação de descobrir a história num ritmo agradável.

Foi feita uma adaptação uma uma minissérie para a televisão britânica há alguns anos e é bem legal também. A história da minissérie e do livro são bem diferentes, mas uma não atrapalha a experiência da outra.

OPINIÃO: Gostei muito do livro, achei uma história bem feita, claramente pensada do início ao fim. Os personagens são sólidos e mesmo os personagens mais unidimensionais o são por um bom motivo. A trama é envolvente e não cansa o leitor.

Embora eu tenha gostado, reconheço que as longas descrições de como se constrói uma catedral podem ser cansativas para alguns leitores. Mas é o tipo de coisa que você pode simplesmente pular caso não goste, sem prejuízo da trama em si.

Além disso, por ser um livro que se passa no século XII, o autor abusa das descrições geográficas e culturais da época, sendo um prato cheio para os leitores que gostam do gênero literário da ficção histórica.

Os únicos pontos negativos para mim foram a extensão dos capítulos (longos demais para um livro deste tamanho) e as cenas de intimidade entre os personagens. As cenas de sexo são terríveis e há um uso excessivo de estupros como fontes de motivação para personagens femininas se fortalecerem. Esse recurso de roteiro tem sido cada vez menos usado e este livro é um exemplo claro do porquê.

Tirando isso, recomendo muito a leitura tanto pelo aprendizado histórico quanto pela trama em si.

NOTA PARA A LEITURA: 9/10

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Guerra do Velho (Leituras 2020 – 14/20)

Hoje falarei do livro “Guerra do Velho”, de John Scalzi. É uma space opera militar, gênero que não me agrada tanto, mas este livro valeu cada momento de leitura.

A história se passa num futuro incerto, no qual os seres humanos, após completar seu 75º aniversário, podem se alistar a uma organização militar chamada “Forças Coloniais de Defesa”. O alistamento é voluntário, mas as pessoas não têm qualquer ideia do que o serviço envolve, apenas que se trata de uma espécie de exército que protege a humanidade de outras raças colonizadoras do universo e que os recrutas são “rejuvenescidos”. O protagonista do livro, John Perry, se alista na FCD no seu aniversário, após a morte de sua esposa e vendo que seu filho já tinha um futuro bem-definido.

Pois bem, normalmente eu passaria uma sinopse como esta, pois não sou muito fã deste nicho específico de literatura. Porém, ouvi falar muito bem deste livro e resolvi conferir. Não me arrependi.

A história acompanha o recruta John Perry conforme ele descobre os segredos das Forças Coloniais de Defesa e desbrava o universo, conhece outras raças de seres espaciais e suas idiossincrasias e ascende em sua carreira militar. Tudo isto permeado de bastante ação, humor e, às vezes, informações demais.

O livro inteiro é uma sequência de surpresas, então qualquer coisa além do que já falei aqui estragaria a experiência de leitura de vocês, caso estejam interessados. Esta resenha também não terá a seção de spoilers, pois isso seria um desserviço ao livro. Como a progressão da história é importante para a sua compreensão, contar a historia do livro e o final seria, além de exaustivo e quase infindável, despropositado.

OPINIÃO: Conforme eu disse, este não é meu tipo de história favorita. Livros como este sempre contém várias armas e tecnologias militares inventadas que, francamente, me cansam um pouco. Há muitos detalhes sobre funcionamento de lasers, bombas e outros apetrechos que interessam vários leitores, mas que me cansam um pouco. Este livro não foge à regra.

Mas a história do livro é muito boa e isso me fez relevar esta excruciante quantidade de “technobabble” e batalhas confusas. A escrita é envolvente e você tem o desejo de continuar ao término de cada capítulo. Li este livro em 4 dias porque você simplesmente quer saber para onde a história vai. Isso é um mérito muito grande do autor.

Achei, por vezes, que os recursos de roteiro foram usados em demasia e que a história parece um pouco forçada, mas isso ainda assim não estraga a experiência da leitura.

NOTA PARA A LEITURA: 7/10

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Eu Sou a Lenda (Leituras 2020 – 13/20)

Neste post falarei sobre o livro “Eu Sou a Lenda”, de Richard Matheson. Trata-se de um clássico do Terror / Horror que inspirou muitos autores, inclusive Stephen King.

Achei um livro muito interessante e fácil de ler (além de ser relativamente curto). A história acompanha a vida de Robert Neville, o único sobrevivente em um mundo pós-apocalíptico que foi assolado por uma praga que transformava as pessoas em vampiros.

Sim, vampiros.

Com direito a alergia a crucifixos, dentes de alho e tudo o mais.

Sim, parece uma porcaria.

Não, não é.

A história é muito bem feita e cuida do ponto de vista extremamente intimista do protagonista. O livro usa o pano de fundo de um mundo semi-deserto, hostil à noite, perigoso e deprimente para tratar dos problemas internos do protagonista: sua solidão, seus medos e sua revolta com a situação.

Robert Neville, sendo o único ser humano que não se tornou um vampiro em toda a área que geográfica que conhece, passa os dias bebendo e buscando mantimentos, reforçando sua casa. Passa as noites também bebendo, mas trancado em casa enquanto os vampiros tentam forçar sua entrada para acabar com o último bastião da humanidade. Em meio a tudo isso, tenta se instruir em ciências que o permitam entender a doença que assolou a humanidade, à qual é imune. É uma vida bastante desagradável e isso se reflete na personalidade do personagem.

O livro conta brevemente como era sua vida antes do início do fim dos tempos, como perdeu sua esposa e filha, como viu todos que conhecia se tornarem seres desprovidos de humanidade. Durante o dia, ele mata os vampiros que encontra enquanto estão adormecidos e faz isso com muita violência, questionando sua própria humanidade ao ter que fazê-lo.

Ler “Eu Sou a Lenda” é entrar de cabeça num mundo terrível, cheio de pensamentos violentos e suicidas, numa leitura pesada e, ao mesmo tempo, envolvente pela constante sensação de perigo que envolve a vida do protagonista.

OPINIÃO: Gostei muito do livro, achei a escrita fluída e bem-feita. O narrador te leva para um mundo desagradável e cheio de surpresas, mas sem tornar a leitura maçante e repetitiva. Por ser um livro curto, ele não precisa se dar ao trabalho de explorar pontos desinteressantes e, nas poucas vezes que o faz, é na tentativa de explicar a tal doença que dizimou a humanidade. Em alguns momentos parece que você está lendo um livro de biologia, em outros, um livro de terror. É uma sensação interessante.

O protagonista é interessante e você consegue se colocar na pele dele, imaginando que tomaria ações parecidas ou mesmo idênticas caso fosse você o envolvido naquela situação absurda.

O livro é muito diferente do filme estrelado por Will Smitb, de 2007. No filme, sequer fica claro que as criaturas se tratam de vampiros, de fato. Eu gostei bastante do filme, mas é claramente uma inspiração, não uma adaptação.

Recomendo a leitura, é muito interessante ver como um livro de terror da década de 1950 se mantém atual. Poucas obras conseguem isso.

NOTA PARA A LEITURA: 8/10

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

Ao longo da história do livro, conhecemos o passado de Robert Neville e vemos que ele sofreu demais até se tornar o último ser humano do planeta. Perdeu sua mulher (que voltou dos mortos para tentar matá-lo, inclusive), a filha e seus amigos. Sua vida é uma eterna luta entre sobrevivência e seus impulsos violentos e, por vezes, suicídas.

Para burlar esses pensamentos, Robert começa a estudar como aquela doença é possível e acaba desenvolvendo diversas teorias que se provam, em sua maioria, corretas.

Em determinado ponto do livro, o protagonista conhece o cachorro que é tão icônico no filme de 2007, porém o mesmo aparece em pouquíssimas páginas, está doente e morre logo, apenas agravando a depressão do protagonista.

Por fim, Robert encontra uma mulher, um dia, num campo próximo de onde está. Ele a persegue, captura e leva para sua casa, onde (já bem menos exaltado) conversa com ela e tenta entender como ela sobreviveu tanto tempo. Ele suspeita que ela esteja infectada e, quando vai testá-la, ela o agride e ele desmaia. Quando acorda, ela fugiu e deixou um bilhete, explicando que estava de fato infectada e que foi enviada por uma nova sociedade de “híbridos” que estava espionando Robert. Estes híbridos são vampiros mais “conscientes”, que vão começar uma nova humanidade.

Apesar do conselho dela para que ele fugisse, ele permanece em sua casa e, no final do livro, eles vão capturá-lo. Ele resiste, é alvejado e é levado para esta nova sociedade, na qual ele percebe ser o único diferente. Ele é o destoante, não aqueles seres híbridos. Ele, por ter caçado vampiros por tanto tempo, é uma lenda que precisa ser exterminada para que aquela nova sociedade possa crescer. Esta é a lição final do livro que, inclusive o batiza.

Embora eu não tenha gostado tanto do final, achei bastante justo.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Luzes de Emergência se Acenderão Automaticamente (Leituras 2020 – 11/20)

O livro da vez é “Luzes de Emergência se Acenderão Automaticamente”, da Luísa Geisler.

Trata-se de um livro com narrativa quase integralmente epistolar, ou seja, em forma de cartas. O personagem principal, Henrique, escreve cartas para seu amigo Gabriel, que está em coma após um acidente doméstico.

Ao longo da narrativa, vemos as reflexões de Henrique sobre sua vida pacata (ou não tanto assim) em Canoas/RS, passando por temas como inseguranças, drogas, relacionamentos, sexualidade, família e carreira.

Henrique é um jovem ainda em fase de formação, cursando faculdade e envolvido em um relacionamento com Manuela, uma garota com fortes tendências depressivas. O próprio Henrique parece muitas vezes oscilar entre a euforia juvenil e o vazio existencial da vida de um jovem numa cidade pequena, sem perspetivas de futuro e atado às expectativas de todos.

A narrativa avança através das cartas de Henrique contando o que está acontecendo em sua vida e de seus amigos e família para Gabriel, “para quando tu acordar”, diz ele com frequência nas cartas. Os meses se alongam e nada de Gabriel acordar. A ausência do melhor amigo em sua vida faz Henrique mudar alguns comportamentos e exponenciar suas dificuldades de relacionamento.

Acompanhar esta história é um exercício de empatia, o que pode levar a boas reflexões pelo leitor.

OPINIÃO: Gostei muito da história do livro, das inseguranças de Henrique, das suas dúvidas quanto à quem é e do que gosta.

É o tipo de livro que talvez não agrade a todos pois o “fio condutor” da história não é forte. Por vezes, sequer compreendemos qual é este fio, devido ao formato da narrativa. Às vezes me questionava se o objetivo principal do livro era discutir o vazio existencial da vida do personagem ou sua sexualidade, confundida pela presença de Dante.

Porém, o que eu não gostei neste livro não foi o modo da narrativa. Já li livros muito bons em forma epistolar ou com grandes fluxos de pensamento, como é o caso deste livro. Repito, a história de “Luzes de Emergência se Acenderão Automaticamente” é muito boa.

O que eu não gostei neste livro foi a linguagem.

Não me refiro aqui ao uso de gírias e simulação do sotaque gaúcho. Estou me referindo à “voz narrativa” do personagem principal. Para mostrar suas insatisfações, o personagem principal entra em longas reflexões cheias de amargor e, por vezes, palavrões que perdem o sentido e me fizeram simplesmente pular parágrafos gigantes de absolutamente nada.

Já li outros livros da Luísa Geisler (indico aqui o excelente “Enfim Capivaras”) e sei que ela é uma autora incrível. Infelizmente, este estilo narrativo adotado por ela neste livro não me agradou desta vez. Mas isso não quer dizer absolutamente nada e é por isso que esta parte da resenha se chama “opinião”. O que me desagradou pode ser justamente o que vai agradar outro.

Vale a leitura, apesar destes problemas que me cansaram um pouco.

NOTA PARA A LEITURA: 7/10

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Caixa de Pássaros [Bird Box] (Leituras 2020 – 10/20)

Chegando à metade das minhas leituras programadas para este ano, falarei aqui sobre “Caixa de Pássaros (Bird Box)”, de Josh Malerman.

Trata-se de um livro de terror e suspense que teve uma recente adaptação num filme original Netflix, muito bem-sucedido e protagonizado por Sandra Bullock. A versão brasileira do livro, inclusive, carrega o nome original junto para fortalecer o marketing por conta do filme, que ficou mundialmente conhecido como “Bird Box”.

O livro e o filme seguem um enredo quase idêntico, então caso você tenha visto o filme (como eu fiz), o livro serve mais como um complemento da história ou uma análise de técnica de escrita (que foi o motivo principal pelo qual li). Após ver o filme e ouvir alguns podcasts sobre o assunto, tive o interesse na leitura despertado pois as opiniões eram de que a escrita do autor era muito boa e que o modo como ele conduziu a história no livro é muito envolvente e deixa o leitor apreensivo, mas vou deixar estas questões para a próxima seção, “opinião”.

A história do livro gira em torno de Malorie, uma mulher que se descobre grávida no exato momento em que o mundo começa a ser assolado por um mal desconhecido, algo que faz as pessoas se tornarem violentas, homicidas e suicidas quando entram em contato visual. Esta premissa é a mais importante do livro, tudo gira em torno da visão. Os personagens precisam viver de olhos fechados ou usando vendas quando saem de casa, pois não se sabe se as “criaturas” estarão lá para serem vistas ou não.

O clima crescente de medo evolui em duas linhas narrativas paralelas. Na primeira, Malorie navega com os filhos pequenos num barco, todos vendados, buscando um abrigo e segurança. Na segunda, é contada a história em ordem (quase) cronológica de como ela chegou a esta situação e os eventos (quase todos extremamente violentos e tensos) pelos quais passou.

OPINIÃO:

Caixa de pássaros é um livro curto e deve ser lido o mais rapidamente possível, como todo bom livro de terror, para que o leitor não perca a sensação de imersão. Por este motivo,  reservei um tempo para ler o livro em 3 dias (ou noites, mais especificamente, e é muito interessante a sensação de ler um livro de terror às duas da madrugada). Confesso que, mesmo sabendo que a escrita do autor era fluida, fiquei impressionado.

Josh Malerman usa constantes fluxos de consciência da personagem principal para causar suspense e terror, deixando o leitor transtornado. Ele simplesmente abole o uso de pontuação e abusa das caixas altas e repetições de frases e palavras para dar ênfase no estado mental da personagem. Logo na primeira vez, o senso de urgência é ativado e você começa automaticamente a sentir a tensão.

Outro ponto que merece atenção é a narrativa das cenas que ocorrem com os personagens vendados ou de olhos fechados. A exploração apenas de outros sentidos que não a visão merece destaque, pois causa uma estranheza ao leitor e, ao mesmo tempo, exige uma sensibilidade maior para “viver” a cena na nossa cabeça. 

A história em duas linhas narrativas é envolvente. É claro que teria sido muito mais impressionante se eu não conhecesse o enredo antes pelo filme e soubesse para onde a história estava indo. Caso você ainda não tenha assistido, recomendo ler o livro antes. Mesmo assim, fui surpreendido no terço final do livro com uma vontade de terminar a história o quanto antes (e aí está o motivo de eu me pegar lendo isso desesperadamente às duas da manhã invés de calmamente numa manhã de sábado ou domingo de quarentena, como qualquer pessoa normal).

Aliás, o fato de estarmos vivendo agora uma situação de quarentena em que não devemos sair de casa (diferente do livro, no qual não se pode sair de casa), também colabora para a sensação da leitura ficar mais envolvente.

O livro é muito bem escrito, peca apenas por alguns pontos que estão “sobrando”, como alguns personagens que não colaboram muito para a trama e estão ali apenas para compor o cenário. Apesar disso, o livro é excelente e vale a leitura.

NOTA PARA A LEITURA: 9/10

Não vou dar spoilers do livro nesta resenha pois acredito que a maior parte das pessoas que lerá já assistiu ao filme. E eles são praticamente iguais, em termos de enredo. O que muda é a narrativa e a escrita do leitor. Logo, recomendo a leitura e aviso que pessoas mais sensíveis talvez se sintam agredidas com tanta escatologia.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Vulgo Grace (Leituras 2020 – 9/20)

Mais de dois anos após assistir à série homônima na Netflix, li “Vulgo Grace”, da Margaret Atwood, a obra original que é objeto desta resenha.

Eu estava para ler este livro há um bom tempo, desde que o comprei após assistir à série, mas optei por deixar a história “sentar” na minha cabeça, o que significa que esqueci mais de 80% da história como geralmente acontece com minha memória ridiculamente curta. Pois bem, li o livro recentemente com “olhos quase novatos” e o resultado foi muito bom. Consegui me surpreender com a história e, embora me lembrasse de algumas cenas do seriado, o início e o final do livro continuaram sendo surpreendentes, então a leitura foi muito positiva.


O livro é um romance histórico que (re)conta a história do assassinato de Thomas Kinnear e Nancy Montgomery pelas mãos de James McDermott e Grace Marks. O crime realmente ocorreu em 1843 e é apresentado logo no começo, sem ser considerado um spoiler (já que não existe spoiler em História). James McDermott foi condenado e enforcado por assassinato e Grace Marks foi condenada à prisão perpétua por conta de sua idade à época do crime, tendo sido considerada nova demais para a pena capital.


O que este livro faz é trazer uma história onde a História tem lacunas. O que realmente pensava Grace Marks? Ela era de fato um demônio manipulador, como disse a mídia da época? Ou era apenas uma garota com medo de um assassino que a envolveu no crime sem seu consentimento? Era “esperta e sedutora como o diabo”, como alegou seu comparsa ou “quase idiota, analfabeta e ignorante”, como alegou seu advogado para comutar a pena de morte em prisão perpétua?


No livro, acompanhamos a perspectiva de Grace e de um médico/psiquiatra/psicólogo (à época, não havia muita distinção e os métodos eram inovadores), Dr. Simon Jordan, que se interessa pelo caso dela e busca entendê-lo pelo viés psicológico. Através de entrevistas com a própria Grace na prisão e coletando dados sobre o crime, o Dr. Jordan busca desvendar quem, de fato, é Grace Marks.

OPINIÃO:

O livro é muito cativante. A personagem de Grace, como apresentado pela autora, é encantadora pois parece alternadamente inocente e culpada aos olhos do leitor, conforme a história avança. Existe uma dubiedade do início ao fim e isso contribui muito para uma trama ser formada onde já houve inclusive julgamento e condenação.


As personagens são muito bem elaboradas, especialmente a de Grace do Dr. Jordan, mas mesmo os personagens coadjuvantes são, em sua maioria, aprofundados e palpáveis. Assim como em “O Conto da Aia”, Margaret Atwood fez um excelente trabalho de caracterização e envolve o leitor que passa a se importar com os personagens que, inclusive, já viveram e morreram na vida real.


As descrições do livro são muito detalhadas para a época em que se passa a história. A autora fez um trabalho pesado de pesquisa em documentos históricos e o resultado é uma ambientação completa que ajuda o leitor a “escapar” para dentro do livro, vivendo parcialmente aquela época em que se passa a história. É um ótimo exemplo do escapismo literário que batiza este humilde blog.


Como ponto negativo, o livro é longo demais. São 509 páginas que poderiam facilmente ser 400. Algumas subtramas estão “sobrando” na história e poderiam facilmente ser cortadas sem prejuízo para o resultado final. Há parágrafos de devaneios igualmente longos que, após determinado momento na história, tornam-se maçantes. Por mais que a história seja ótima e os personagens precisem ser esmiuçados psicologicamente para entendermos suas nuances, o livro peca neste aspecto. Não tira o brilho da história contada, mas sim do livro em si, que poderia ser mais curto.


Ainda assim, recomendo muito a leitura do livro. Talvez os pontos que eu tenha achado cansativos sejam justamente os pontos que outro leitor gostará. Esta é a magia da literatura: não há um consenso do que é bom ou ruim em determinada técnica narrativa.


A história do livro é muito boa, a ambientação é incrível e a autora leva o leitor até o final, embora com alguma resistência, a saber o que se passou de verdade naquela história. Com reflexões sobre os costumes da época, o machismo e os preconceitos, “Vulgo Grace” é uma leitura interessante nesta época caótica em que vivemos.

NOTA PARA A LEITURA: 8/10

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

Conforme já apontado antes, não existem spoilers na História. O fato de que Grace e McDermott foram julgados e condenados, que os assassinatos realmente ocorreram e que Grace foi perdoada e solta após quase 30 anos de encarceramento são todos dados históricos.


O que o livro nos conta são as histórias de Grace antes, durante e depois do encarceramento. Seu passado sofrido de imigrante, os abusos do pai alcoólatra, a perda da melhor amiga pouco antes de assumir o trabalho na casa do Sr. Kinnear, os assédios sofridos, sexuais e morais, por diversas pessoas. Enfim, a história do livro suplanta as lacunas da História.


Quanto ao segundo “personagem principal”, Dr. Jordan, o mesmo é inteiramente ficcional e representa uma das correntes médicas da época, que buscava tratar dos insanos e loucos como pessoas e não como animais. Ele se envolve com Grace e termina apaixonado por ela, embora não tenha se declarado em momento algum. Sua vida é uma sucessão de fracassos e não é dado ao romantismo. Fica claro para o leitor que seu envolvimento com Grace acaba sendo mais uma obsessão profissional (que ele confunde por paixão pessoal), fruto de uma mente tão perturbada quanto a da própria Grace. Na história do Dr. Jordan, inclusive, é onde se encontram as passagens mais tediosas do livro. De toda forma, é um personagem interessante, embora “aprofundado demais”.


Desta forma, falar em “spoilers” neste livro é bastante complexo, pois o final da história já é entregue no começo ou a qualquer um que procure a história do crime na internet. O que se vê é o crescimento dos personagens e como eles se tornam importantes para o leitor, conforme a leitura avança.

Por Rafael D’Abruzzo

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