Literatura, resenhas de livros e dicas de leitura

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Resenha: Caixa de Pássaros [Bird Box] (Leituras 2020 – 10/20)

Chegando à metade das minhas leituras programadas para este ano, falarei aqui sobre “Caixa de Pássaros (Bird Box)”, de Josh Malerman.

Trata-se de um livro de terror e suspense que teve uma recente adaptação num filme original Netflix, muito bem-sucedido e protagonizado por Sandra Bullock. A versão brasileira do livro, inclusive, carrega o nome original junto para fortalecer o marketing por conta do filme, que ficou mundialmente conhecido como “Bird Box”.

O livro e o filme seguem um enredo quase idêntico, então caso você tenha visto o filme (como eu fiz), o livro serve mais como um complemento da história ou uma análise de técnica de escrita (que foi o motivo principal pelo qual li). Após ver o filme e ouvir alguns podcasts sobre o assunto, tive o interesse na leitura despertado pois as opiniões eram de que a escrita do autor era muito boa e que o modo como ele conduziu a história no livro é muito envolvente e deixa o leitor apreensivo, mas vou deixar estas questões para a próxima seção, “opinião”.

A história do livro gira em torno de Malorie, uma mulher que se descobre grávida no exato momento em que o mundo começa a ser assolado por um mal desconhecido, algo que faz as pessoas se tornarem violentas, homicidas e suicidas quando entram em contato visual. Esta premissa é a mais importante do livro, tudo gira em torno da visão. Os personagens precisam viver de olhos fechados ou usando vendas quando saem de casa, pois não se sabe se as “criaturas” estarão lá para serem vistas ou não.

O clima crescente de medo evolui em duas linhas narrativas paralelas. Na primeira, Malorie navega com os filhos pequenos num barco, todos vendados, buscando um abrigo e segurança. Na segunda, é contada a história em ordem (quase) cronológica de como ela chegou a esta situação e os eventos (quase todos extremamente violentos e tensos) pelos quais passou.

OPINIÃO:

Caixa de pássaros é um livro curto e deve ser lido o mais rapidamente possível, como todo bom livro de terror, para que o leitor não perca a sensação de imersão. Por este motivo,  reservei um tempo para ler o livro em 3 dias (ou noites, mais especificamente, e é muito interessante a sensação de ler um livro de terror às duas da madrugada). Confesso que, mesmo sabendo que a escrita do autor era fluida, fiquei impressionado.

Josh Malerman usa constantes fluxos de consciência da personagem principal para causar suspense e terror, deixando o leitor transtornado. Ele simplesmente abole o uso de pontuação e abusa das caixas altas e repetições de frases e palavras para dar ênfase no estado mental da personagem. Logo na primeira vez, o senso de urgência é ativado e você começa automaticamente a sentir a tensão.

Outro ponto que merece atenção é a narrativa das cenas que ocorrem com os personagens vendados ou de olhos fechados. A exploração apenas de outros sentidos que não a visão merece destaque, pois causa uma estranheza ao leitor e, ao mesmo tempo, exige uma sensibilidade maior para “viver” a cena na nossa cabeça. 

A história em duas linhas narrativas é envolvente. É claro que teria sido muito mais impressionante se eu não conhecesse o enredo antes pelo filme e soubesse para onde a história estava indo. Caso você ainda não tenha assistido, recomendo ler o livro antes. Mesmo assim, fui surpreendido no terço final do livro com uma vontade de terminar a história o quanto antes (e aí está o motivo de eu me pegar lendo isso desesperadamente às duas da manhã invés de calmamente numa manhã de sábado ou domingo de quarentena, como qualquer pessoa normal).

Aliás, o fato de estarmos vivendo agora uma situação de quarentena em que não devemos sair de casa (diferente do livro, no qual não se pode sair de casa), também colabora para a sensação da leitura ficar mais envolvente.

O livro é muito bem escrito, peca apenas por alguns pontos que estão “sobrando”, como alguns personagens que não colaboram muito para a trama e estão ali apenas para compor o cenário. Apesar disso, o livro é excelente e vale a leitura.

NOTA PARA A LEITURA: 9/10

Não vou dar spoilers do livro nesta resenha pois acredito que a maior parte das pessoas que lerá já assistiu ao filme. E eles são praticamente iguais, em termos de enredo. O que muda é a narrativa e a escrita do leitor. Logo, recomendo a leitura e aviso que pessoas mais sensíveis talvez se sintam agredidas com tanta escatologia.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Vulgo Grace (Leituras 2020 – 9/20)

Mais de dois anos após assistir à série homônima na Netflix, li “Vulgo Grace”, da Margaret Atwood, a obra original que é objeto desta resenha.

Eu estava para ler este livro há um bom tempo, desde que o comprei após assistir à série, mas optei por deixar a história “sentar” na minha cabeça, o que significa que esqueci mais de 80% da história como geralmente acontece com minha memória ridiculamente curta. Pois bem, li o livro recentemente com “olhos quase novatos” e o resultado foi muito bom. Consegui me surpreender com a história e, embora me lembrasse de algumas cenas do seriado, o início e o final do livro continuaram sendo surpreendentes, então a leitura foi muito positiva.


O livro é um romance histórico que (re)conta a história do assassinato de Thomas Kinnear e Nancy Montgomery pelas mãos de James McDermott e Grace Marks. O crime realmente ocorreu em 1843 e é apresentado logo no começo, sem ser considerado um spoiler (já que não existe spoiler em História). James McDermott foi condenado e enforcado por assassinato e Grace Marks foi condenada à prisão perpétua por conta de sua idade à época do crime, tendo sido considerada nova demais para a pena capital.


O que este livro faz é trazer uma história onde a História tem lacunas. O que realmente pensava Grace Marks? Ela era de fato um demônio manipulador, como disse a mídia da época? Ou era apenas uma garota com medo de um assassino que a envolveu no crime sem seu consentimento? Era “esperta e sedutora como o diabo”, como alegou seu comparsa ou “quase idiota, analfabeta e ignorante”, como alegou seu advogado para comutar a pena de morte em prisão perpétua?


No livro, acompanhamos a perspectiva de Grace e de um médico/psiquiatra/psicólogo (à época, não havia muita distinção e os métodos eram inovadores), Dr. Simon Jordan, que se interessa pelo caso dela e busca entendê-lo pelo viés psicológico. Através de entrevistas com a própria Grace na prisão e coletando dados sobre o crime, o Dr. Jordan busca desvendar quem, de fato, é Grace Marks.

OPINIÃO:

O livro é muito cativante. A personagem de Grace, como apresentado pela autora, é encantadora pois parece alternadamente inocente e culpada aos olhos do leitor, conforme a história avança. Existe uma dubiedade do início ao fim e isso contribui muito para uma trama ser formada onde já houve inclusive julgamento e condenação.


As personagens são muito bem elaboradas, especialmente a de Grace do Dr. Jordan, mas mesmo os personagens coadjuvantes são, em sua maioria, aprofundados e palpáveis. Assim como em “O Conto da Aia”, Margaret Atwood fez um excelente trabalho de caracterização e envolve o leitor que passa a se importar com os personagens que, inclusive, já viveram e morreram na vida real.


As descrições do livro são muito detalhadas para a época em que se passa a história. A autora fez um trabalho pesado de pesquisa em documentos históricos e o resultado é uma ambientação completa que ajuda o leitor a “escapar” para dentro do livro, vivendo parcialmente aquela época em que se passa a história. É um ótimo exemplo do escapismo literário que batiza este humilde blog.


Como ponto negativo, o livro é longo demais. São 509 páginas que poderiam facilmente ser 400. Algumas subtramas estão “sobrando” na história e poderiam facilmente ser cortadas sem prejuízo para o resultado final. Há parágrafos de devaneios igualmente longos que, após determinado momento na história, tornam-se maçantes. Por mais que a história seja ótima e os personagens precisem ser esmiuçados psicologicamente para entendermos suas nuances, o livro peca neste aspecto. Não tira o brilho da história contada, mas sim do livro em si, que poderia ser mais curto.


Ainda assim, recomendo muito a leitura do livro. Talvez os pontos que eu tenha achado cansativos sejam justamente os pontos que outro leitor gostará. Esta é a magia da literatura: não há um consenso do que é bom ou ruim em determinada técnica narrativa.


A história do livro é muito boa, a ambientação é incrível e a autora leva o leitor até o final, embora com alguma resistência, a saber o que se passou de verdade naquela história. Com reflexões sobre os costumes da época, o machismo e os preconceitos, “Vulgo Grace” é uma leitura interessante nesta época caótica em que vivemos.

NOTA PARA A LEITURA: 8/10

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

Conforme já apontado antes, não existem spoilers na História. O fato de que Grace e McDermott foram julgados e condenados, que os assassinatos realmente ocorreram e que Grace foi perdoada e solta após quase 30 anos de encarceramento são todos dados históricos.


O que o livro nos conta são as histórias de Grace antes, durante e depois do encarceramento. Seu passado sofrido de imigrante, os abusos do pai alcoólatra, a perda da melhor amiga pouco antes de assumir o trabalho na casa do Sr. Kinnear, os assédios sofridos, sexuais e morais, por diversas pessoas. Enfim, a história do livro suplanta as lacunas da História.


Quanto ao segundo “personagem principal”, Dr. Jordan, o mesmo é inteiramente ficcional e representa uma das correntes médicas da época, que buscava tratar dos insanos e loucos como pessoas e não como animais. Ele se envolve com Grace e termina apaixonado por ela, embora não tenha se declarado em momento algum. Sua vida é uma sucessão de fracassos e não é dado ao romantismo. Fica claro para o leitor que seu envolvimento com Grace acaba sendo mais uma obsessão profissional (que ele confunde por paixão pessoal), fruto de uma mente tão perturbada quanto a da própria Grace. Na história do Dr. Jordan, inclusive, é onde se encontram as passagens mais tediosas do livro. De toda forma, é um personagem interessante, embora “aprofundado demais”.


Desta forma, falar em “spoilers” neste livro é bastante complexo, pois o final da história já é entregue no começo ou a qualquer um que procure a história do crime na internet. O que se vê é o crescimento dos personagens e como eles se tornam importantes para o leitor, conforme a leitura avança.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha Tripla: Fundação / Fundação e Império / Segunda Fundação (Leituras 2020 – 6, 7 e 8/20)

Deixo aqui minhas impressões e opiniões sobre os livros “Fundação”, “Fundação e Império” e “Segunda Fundação”, de Isaac Asimov.

Nestas obras, conhecida como a Trilogia da Fundação, o autor narra eventos ocorridos com a humanidade num futuro distante, tão distante que não há sequer traço do planeta Terra nesta obra. Toda a história se passa em diversos mundos espalhados pelo universo, já conquistado pela humanidade há muitos milênios.

Os eventos começam a partir do declínio e queda do Império Galático. Hari Seldon, um psico-historiador percebe esta movimentação e leva a questão aos responsáveis do Império.

Através da Psico-História (uma mistura de sociologia, matemática e psicologia de massas), Hari Seldon mapeou os movimentos de grandes civilizações por diversos séculos ou até milênios à frente de seu tempo. A ideia desta ciência é que é possível prever eventos em grandes escalas pois a humanidade se comporta de forma previsível como um grupo, mas não é possível prever eventos individuais ou de pequenos grupos, pois fogem à lógica social, à estatística e às probabilidades.


Hari Seldon preconizou não apenas o fim do império, mas também um período de 30 mil anos de ignorância que se seguiriam a este declínio. Seu plano foi criar uma Fundação Enciclopédica que guardaria o conhecimento do Império Galático e diminuiria este intervalo de barbárie de 30 mil anos para apenas mil anos. Ao término deste período, de acordo com o plano, a Fundação se tornará um novo Império Galático, melhor e mais forte.

Ao apresentar seus estudos para o Império, Hari Seldon é acusado de traição e consegue negociar seu próprio exílio junto de um grupo de cientistas que o segue, bem como a criação de duas Fundações: uma no planeta Terminus (a Fundação que acompanhamos durante toda a trilogia) e outra do outro lado da galáxia, a Segunda Fundação, que tem papel apenas no último livro da saga.

Conforme os livros avançam, as previsões de Seldon se confirmam uma após a outra e a Fundação busca resistir num universo cada vez mais bárbaro ao seu redor.

OPINIÃO: A Trilogia Fundação é uma obra-prima da ficção científica. Isaac Asimov era um escritor muito competente e pouco descritivo. Seus livros mais se assemelham a relatos de eventos do que a um romance. Por ser cientista por formação, a habilidade de Asimov em concatenar eventos, criar tramas e resolver questões de forma sistemática deixam a leitura de seus livros muito dinâmica.

A história desta trilogia é interessante, sem dúvida. Mas para mim, mais pareceu um estudo de sociologia do que um livro de literatura em muitos aspectos. As previsões de Hari Seldon vão se concretizando ao longo do livro e o leitor deve assumir uma leve suspensão de descrença para aceitar este domínio da “mão morta” de Seldon sobre a história. Como isto faz parte da lógica do livro, esta ideia vai se tornando natural ao longo da leitura. No meu caso, o único ponto que tiro da minha nota para a leitura vêm justamente desta necessidade da trama de se ajustar constantemente a este plano original, às vezes de forma não tão convincente. Isto ocorre especialmente no primeiro volume e é superado nos demais.

A história desta trilogia é narrada por muitos personagens e por diversos pontos de vista, não sendo possível apontar um protagonista. O personagem central é a própria Fundação, com seus muitos habitantes. Neste sentido, é uma leitura desafiadora para os que estão acostumados a histórias narradas sempre sob um único ponto de vista. Por se tratar de uma história de proporções galáticas, os pontos de vista e personagens surgem em diversos pontos, com backgrounds e culturas diferentes.

Cabe ao leitor adaptar-se à grandiosidade desta obra que, apesar de ter uma trama complexa, é de leitura simples e cativante.

NOTA PARA A LEITURA: 9/10

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

Nesta resenha, não teremos spoilers detalhados da história pois são diversos eventos que se sucedem rapidamente e a resenha ficaria quase do tamanho do livro. De toda forma, ainda que se revelasse o final dos livros, a história não estaria comprometida como um todo, justamente por ser muito dinâmica. Os spoilers abaixo são conceituais para se entender o todo da história.


No primeiro volume, “Fundação”, é narrada a história de Seldon e, posteriormente, a história da primeira Fundação, já após sua morte. Este primeiro volume é claramente um conjunto de pequenos contos integrados pelo autor como livro, pois são pequenas histórias que se sucedem. Nelas, a Fundação vai superando seus desafios, guerras externas causadas e golpes internos de uma forma ou de outra, seguindo o plano Seldon.


No segundo volume, “Fundação e Império”, a Fundação derrota o Império Galático (ou o que sobrou dele) após ser atacada e se consolida como centro intelectual do universo. Com o tempo, torna-se estagnada e burocrática. Isto até a chegada do Mulo, um mutante não previsto pelo plano Seldon, fruto do acaso. Imprevisível, e capaz de controlar as emoções dos seres humanos, o Mulo subjuga a Fundação e controla a maior parte da galáxia, colocando como objetivo a destruição da Segunda Fundação, sua única possível rival, que está escondida pelo plano original de Seldon.


É revelado, então, que a Segunda Fundação, sobre qual nada se fala nos primeiros livros é a “verdadeira Fundação”, composta por psico-historiadores herdeiros do plano Seldon. Esta fundação sempre observou a primeira e garantiu que seus planos dessem certo, ficando eles mesmos (a Segunda Fundação), nas sombras, como guardiões do plano original.


No último livro desta Trilogia, “Segunda Fundação”, o Mulo busca a Segunda Fundação, mas é vencido por ela na primeira metade do livro, sendo que a primeira Fundação nada sabe sobre esta intervenção. Ao longo do tempo, um grupo da primeira Fundação começa a suspeitar que foi a Segunda Fundação que deteve o Mulo por também ter poderes mentais. A segunda metade da obra presta-se a explicar como este grupo da primeira Fundação e a segunda Fundação se enfrentarão indiretamente para retomar o equilíbrio do plano Seldon.

Como a humanidade ficará ao final destes eventos, se o objetivo do plano Seldon será alcançado e se a Fundação se tornará um novo Império, melhor e mais forte, deixo aos leitores para descobrirem.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Coração / Kokoro (Leituras 2020 – 5/20)

Minha quinta leitura do ano foi Coração (no original japonês: Kokoro), de Natsume Sōseki.

A história do livro gira em torno de dois personagens principais: o Professor (Sensei) e o Eu, personagem indefinido e sem características físicas, que tem o condão de deixar o leitor em primeiro plano para o contato com o personagem mais interessante do livro, o Professor.

No começo do livro, o Eu está de férias escolares numa área praiana quando conhece o Professor, figura misteriosa cujas ações chamam a atenção por destoarem dos costumes sociais padrões esperados. Ele é um misantropo numa sociedade que valoriza muito mais o coletivo do que o indivíduo.

Ao longo do livro, Eu desenvolve uma fascinação quase obsessiva pelo Professor. Ambos desenvolvem uma amizade baseada num contato praticamente diário, enquanto Eu tenta desvendar os mistérios do passado escondido do professor.

Em paralelo à nova amizade com o Professor, a vida pessoal de Eu torna-se mais conturbada com o desenvolvimento de uma doença incurável de seu pai, causando sua ida à casa da família no interior, afastando-se de Tóquio e da vida moderna junto ao professor.

Graças às informações trazidas para mim pela minha amiga que me emprestou este livro (muito difícil de achar em português, inclusive), estudiosa da cultura japonesa e oriental em geral, entendi que o autor atribuiu aos personagens deste livro o espírito da época no Japão. O Professor é a transição do velho Japão feudal para o Japão moderno, por isso se sente deslocado da sociedade como está. Há diversos paralelos como este no livro e ler sob esta perspectiva traz ainda mais profundidade à trama.

OPINIÃO: Kokoro é, sem dúvida, um dos livros mais tristes que já li. Talvez seja o mais triste. E eu achava que o livro que eu escrevi era pra baixo. Ledo engano, comparando com este.

Triste e profundo. Numa trama simples, Natsume Sōseki toca no nervo do leitor com temas como culpa, deslocamento social, solidão e ansiedade. Há muita profundidade na história, não só pela ressignificação ideológica dos personagens, mas pelo modo poético como a história é contada.

Há na leitura, ao longo dos três grandes capítulos do livro, um movimento de distanciamento do Eu. No começo do primeiro capítulo, ele é a figura principal, sendo aos poucos trocado pelo Professor. No segundo capítulo há uma reaproximação ao Eu, logo colocada de lado pelas preocupações com a família e o Professor, agora longe. Por fim, o terceiro capítulo é inteiramente narrado pelo Professor, inexistindo a figura do Eu, totalmente subjugado por uma personagem mais cativante.

Do mesmo modo como em nossas vidas acabamos, às vezes, por deixar de ter opiniões próprias em face de opiniões e dogmas de outros, também no livro vemos esta aniquilação das vontade própria, conforme o Eu se anula perante o Outro.

Um livro denso, complexo e delicado, como flores lindas, porém venenosas. Kokoro te leva para dentro de uma história triste com tanta força que você pode ser afogar.

Cuidado com esta leitura se estiver numa fase difícil da vida. Se você estiver numa fase boa, quando acabar o livro já não estará mais nela. Experiência própria.

NOTA PARA A LEITURA: 10/10.

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

Ao longo de toda a história, Eu tenta descobrir sobre o passado do Professor. Sua vida vai acontecendo durante esta obsessão e ele não percebe que está ausente de sua própria história.

Quando o pai de Eu adoece e ele precisa ir para a casa da família no interior para dar apoio, acaba distanciando-se do Professor, que havia prometido contar sua história algum dia, antes de morrer.

A doença do pai de Eu avança e ele recebe uma longa carta do Professor. Trata-se de um testamento, na qual ele revela sua história como responsável pelo suicídio de seu melhor amigo, o que o assombra desde então, tirando sua vontade de viver.

Por fim, com a morte do Imperador Meiji, o Professor sente que finalmente é sua hora e também se mata, deixando os detalhes de seu passado na carta.

Toda a história do passado do Professor é o que confere a densidade da leitura. Contar aqui seria um desfavor à sua leitura, caso algum dia vocês se aventurem pelas tristes veredas de Kokoro.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Blade Runner / Androides sonham com ovelhas elétricas? (Leituras 2020 – 4/20)

Neste post vou dar minhas impressões sobre o livro “Androides sonham com ovelhas elétricas?”, de Philip K. Dick. Ou, como ficou amplamente conhecido por conta do filme de Ridley Scott: Blade Runner.

Inicialmente, um aviso para quem viu o filme: a história do filme e do livro são quase totalmente diferentes. Apenas foram utilizados os nomes dos personagens e a investigação principal. Até mesmo a atmosfera do livro é diferente da do filme. Entendo isso como algo positivo, pois você pode absorver histórias diferentes e comparar suas impressões.

No livro, acompanhamos a história de Rick Deckard, um caçador de recompensas da polícia de São Francisco num futuro distópico no qual a Terra está parcialmente inabitável por ter sido super explorada, com a humanidade migrando para outros planetas e restando, na Terra, apenas os indivíduos marginalizados ou de baixo QI, afetados pela radiação do planeta, oriunda de uma guerra nuclear.

Neste ambiente, os poucos habitantes da terra buscam ser donos de animais verdadeiros, o que é símbolo de status num planeta cuja vida animal foi praticamente extinta, e os que não têm recursos para tanto adquirem versões elétricas e artificiais, réplicas perfeitas e quase indistinguíveis dos animais originais a ponto de parecerem, de fato, vivas. Deckard, no caso, é dono de uma ovelha elétrica (daí o nome do livro).

A trama do livro envolve uma crise moral do protagonistas, que se vê questionando seu trabalho pela primeira vez. Seu trabalho consiste em “aposentar” (ou matar, se estivessem vivos) androides que estão ilegalmente na Terra. Deckard sempre executou seu trabalho sem questionamentos até ser obrigado a caçar um grupo de androides Nexus-6 de última geração, chefiado por Roy Batty, vendo-se numa trama envolvendo uma amante androide e inimigos que parecem tão humanos quanto ele próprio.

O que permite que o protagonista distinga os androides dos humanos é que apenas as pessoas têm empatia e, assim, os androides falham no teste de empatia Voight-Kampff. Empatia, aliás, é um dos principais pontos do livro, havendo inclusive uma religião voltada para isso, o Mercerismo, que gira em torno de Wilbur Mercer. Há uma caixa de empatia, uma espécie de vídeo game na qual as pessoas podem se sintonizar com essa entidade chamada Mercer que está sempre subindo uma montanha e sendo apedrejado, possibilitando aos adeptos da caixa sentirem as dores de Mercer e até mesmo serem machucados de verdade durante a experiência.

Nem os animais elétricos e suas implicações sociais, nem o Mercerismo e nem mesmo a esposa de Deckard estão na trama do filme. Foi uma surpresa interessante ler um livro e perceber um universo muito além do filme, mas complementar.

OPINIÃO: Gosto muito de Blade Runner, o filme, e isso talvez tenha influenciado minha opinião, pois me senti forçado a gostar do livro desde o começo. É, de fato, um ótimo livro, mas senti falta do peso da atmosfera do filme com o qual estou acostumado.

Não obstante, gostei muito do livro. Ele traz questionamentos muito diferentes do filme, em diversas esferas. Enquanto a preocupação principal do filme é mostrar que humanos e androides não são tão diferentes, o livro se aprofunda muito mais no que é de fato ser humano, especialmente numa sociedade apodrecida e cheia de impressões falsas, tão artificiais como a ovelha de Deckard. No livro, também, encontramos reflexões sobre consumismo e religião, trazendo nuances que inserem o leitor na obra com mais profundidade.

Recomendo a leitura do livro, é a melhor obra de Philip K. Dick que já li.

NOTA PARA A LEITURA: 9/10.

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

O livro inicia com Deckard recebendo a missão de caçar os androides fugitivos. Para isso, precisa conversar com representantes da empresa que os cria e, assim, conhece Rachel, uma androide pela qual se apaixona, embora seja casado e questione se é possível ter sentimentos por algo que não está vivo, propriamente dito. Pouco antes do desfecho do livro, inclusive, ele chega a dormir com ela, trazendo um dos diálogos mais profundos do livro, no qual Rachel revela que já dormiu com diversos caçadores de androides e sua função é justamente desestabilizar tais profissionais emocionalmente.

Deckard “aposenta” os androides fugitivos um a um, inclusive uma sósia de Rachel, questionando cada vez mais seu trabalho e pensando no que fazer com o dinheiro ganho das recompensas. Após aposentar 3 dos 6 androides, consegue dinheiro para comprar uma cabra de verdade, trazendo uma enorme alegria à sua vida, mas por pouco tempo, uma vez que a cabra é morta por Rachel quando ele decide continuar sua caçada aos androides restantes mesmo após dormir com ela.

Após destruir todos os androides, Deckard busca se isolar no Oregon, região dos EUA totalmente devastada pela guerra nuclear. Lá, ele encontra um sapo que julga ser de verdade e leva o animal para casa. Chegando em casa, sua esposa mostra que o sapo é elétrico, devolvendo Deckard para o status inicial do livro: sem dinheiro e dono de um animal postiço, fechando o ciclo de mediocridade que permeia a vida do personagem.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: O Sal das Lágrimas (Leituras 2020 – 3/20)

A terceira leitura do ano foi O Sal das Lágrimas, de Ruta Sepetys.

O livro é ambientado nos momentos finais da segunda guerra mundial e foca num grupo heterogêneo que busca a própria sobrevivência em território alemão prestes a ser invadido pela Rússia.

A autora é filha de um lituano refugiado e, além das memórias familiares, fez um pesado trabalho de pesquisa histórica para escrever o livro que trata de um acontecimento real: o afundamento, pelos russos, de um navio alemão chamado Wilhelm Gustloff no início de 1945, vitimando mais de 9 mil refugiados, inclusive mulheres e crianças. É o pior desastre marítimo da história, superando em seis vezes o número de mortos em relação ao Titanic.

O livro trata da história de quatro jovens que têm o destino entrelaçado em algum momento do livro. Joana é uma enfermeira lituana que foi aceita na Alemanha nazista por uma das políticas hitleristas, mas foi obrigada a deixar a família para trás e tem um passado trágico. Florian é um soldado prussiano que finge estar a serviço do Reich, mas está numa missão pessoal contra o alto escalão nazista. Emília é uma adolescente polonesa que está ilegal em território nazista e tem um segredo terrível que carrega consigo. Por fim, Alfred é um marinheiro do mais baixo escalão nazista, narcisista e com sonhos de grandeza após uma vida de humilhações por não ser considerado exatamente o arquétipo da juventude hitlerista. Sua história é contada através principalmente de cartas nas quais interage com uma jovem alemã vizinha de sua família, contando seus inventados feitos de guerra enquanto limpa banheiros no navio.

Os três primeiros personagens encontram Alfred na metade do livro, mais ou menos, e acabam dependendo dele para embarcarem e se manterem no navio para fugir.

Uma história de luta, tragédia e dor, contada com muito sentimento pela autora. Vale a leitura, sem dúvida, ainda mais por se tratar de um livro de segunda guerra mundial sob uma ótica diferente da de sempre.

OPINIÃO: Gostei muito do livro, achei o ponto de vista dos protagonistas diversificados e complementares entre si.

Cada um é assombrado por algum sentimento conflitante e tem um objetivo definido. As motivações são compreensíveis e factíveis, embora eu entenda que a carga romântica colocada na história é desnecessária e até traduz um contrassenso para um momento tão difícil da vida dos personagens. Senti que há um romance forçado na trama e isso atrapalha um pouco a experiência.

Fora isso, a história é ótima, faz você refletir sobre “o outro lado da guerra” e as cenas de violência causam impacto no leitor, já que são apresentadas “de repente”, como se espera de uma guerra, em que não há anúncio prévio de um bombardeio, por exemplo.

A autora apresenta sentimentos diversos em seus personagens e lida muito bem com as consequências que cada escolha traz ao grupo. Muito bem escrito.

NOTA PARA A LEITURA: 8/10

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

Com o avanço da história, descobrimos os segredos dos protagonistas: Joana abandonou a família e deixou a irmã para morrer. Florian está traindo o Reich contrabandeando uma obra de arte cobiçada por Hitler, a quem odeia já que seu pai foi morto pela polícia nazista por ter participado do atentado da operação valquiria. Emília foi estuprada por soldados russos após ser entregue por uma mãe nazista para proteger a própria filha. Alfred é fraco, mimado e denunciou sua amada, para quem escreve, causando sua desgraça.

Quando finalmente o embarque no navio começa, Alfred busca seu reconhecimento ajudando Florian, que se apresenta como um soldado em missão especial pelo alto escalão nazista. Joana é recrutada como enfermeira e ajuda no parto de Emília.

Quando o navio é atacado, Emília sucumbe, mas o bebê é salvo por Florian. Alfred entra num surto psicótico e morre de uma forma patética, como foi sua vida até então. Florian e Joana constituem uma família (o romance forçado do livro), criando a filha de Emília.

O livro acaba com uma carta de uma mulher a Florian, tornando pública a história de Emília e daquele grupo que sobreviveu ao maior desastre marítimo de todos os tempos.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: As Águas Vivas Não Sabem de Si

Além das resenhas dos livros que estou lendo em 2020, estou analisando algumas obras que impactaram minha experiência como leitor. A primeira análise neste sentido foi do livro O Mundo de Sofia. Desta vez, a resenha é de uma obra bem mais recente e, de quebra, nacional.

As Águas Vivas Não Sabem de Si, da Aline Valek, é um livro espetacular. Nele, acompanhamos a história de Corina, uma mergulhadora profissional que está numa missão para testar um traje de mergulho para profundidades abissais numa estação submarina (Auris), já situada num nível bem abaixo da linha do mar.

Nesta estação, também estão outro mergulhador (cujo apelido é Arraia), um cientista americano cujas teses não são bem aceitas no mundo acadêmico (Martin) e seu assistente (Mauricio), além de Susana, que está encarregada de garantir a sobrevivência de todos na estação. Cada uma destas pessoas tem motivos (expressos e ocultos) para estarem no mesmo ambiente.

Martin deseja aproveitar a missão para estudar uma teoria sua sobre a comunicação no fundo do mar, acompanhado de perto por Mauricio. Esta relação com a vida marinha é o que move Corina em sua vida de mergulhadora e serve como contraponto para a narrativa que acompanha a perspectiva das criaturas marinhas em paralelo ao que acontece na estação de pesquisa.

A convivência entre os personagens gera discussões sobre a natureza humana, a solidão e reflexões sobre a sociedade calamitosa muitos metros acima de suas cabeças. Além disso, Corina carrega um segredo que pode colocar em risco a missão e sua própria vida.

OPINIÃO: As Águas Vivas Não Sabem de Si é impressionante. Não só o trabalho de pesquisa da Aline é memorável (contando em detalhes o ofício de mergulhador, a vida numa estação aquática e a biologia marinha), como também a narrativa da história surpreende. Quebrando totalmente a prática narrativa habitual, a autora desloca o protagonismo de alguns capítulos para as mais diversas criaturas marinhas: cachalotes, águas vivas, polvos e outras mais.

A vida de Corina é explorada em paralelo à vida marinha, mostrando que o ecossistema é mais sinérgico do que parece à primeira vista. Os capítulos que narram a vida subaquática são repletos de reflexões e perguntas filosóficas das criaturas que os protagonizam, sendo um deleite para os leitores mais detalhistas. Os pontos de vista são tão diversificados no livro que o leitor tem um sentimento de pertencimento àquele ambiente, como a própria Corina tem.

A sensação de ler este livro é agridoce; por um lado, aproveitamos a história magistralmente apresentada pela autora e, por outro, a angústia de uma vida efêmera e a solidão do isolamento (por vezes dentro de nós mesmos) assolam o leitor em cada capítulo de cada personagem, humano ou não. Solidão esta que é, ao menos ao meu ver, a temática central da história.

NOTA PARA A LEITURA:10/10.

Observação: Esta resenha não terá a sessão de análise com spoilers por dois motivos: 1) o livro é recente e integra o (infelizmente) semi-ignorado mercado literário nacional contemporâneo. Dar o final do livro aqui seria desestimular a leitura, o que é precisamente o oposto do objetivo deste site; e 2) a história evolui com uma sensibilidade invejável. A autora tem pleno domínio do texto e cada capítulo (sob a ótica humana ou não) é essencial para o final catártico da história. Traduzir em poucas palavras o final do livro seria impossível sem o sentimento que ele traz.

A conclusão da história é um soco no estômago (e outro na cara, um chute na costela… enfim, você termina no chão) e vai te deixar refletindo sobre a leitura durante muito, muito tempo.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: Clube da Luta (Leituras 2020 – 2/20)

Minha segunda leitura do ano foi “Clube da Luta”, de Chuck Palahniuk. A expectativa para este livro era enorme, já que aprecio muito o filme homônimo e o assisti diversas vezes.

No livro, acompanhamos a história do protagonista sem nome que narra a história sob seu ponto de vista. Ele sofre de insônia, tem um trabalho enfadonho e coleciona peças de mobília e roupas de lojas de departamento para supri o vazio existencial que sente. Logo no início do livro, vemos o protagonista contracenando com Tyler Durden, numa cena de grande tensão que antecede uma tragédia. A partir deste ponto, a história é contada em flashback.

A linha cronológica do livro, passando o in media res inicial, conta-nos sobre a vida do protagonista, sua já mencionada insônia e seu trabalho estressante com constantes viagens de avião (causadoras de um jet lag que agrava a insônia), e sua visita rotineira a grupos de apoio para doenças terminais, como cânceres, parasitas cerebrais e outros. O objetivo destas visitas é cumprir uma sugestão de seu médico, que o aconselhou a “ver o que é um sofrimento real”, para colocar sua insônia em perspectiva.

Nestes grupos de apoio o protagonista consegue se soltar, chorar, extravasar e, enfim, dormir adequadamente à noite. Quando uma mulher chamada Marla Singer começa a frequentar os mesmos grupos de apoio que ele, sua “terapia alternativa” acaba e a insônia se agrava.

Durante uma viagem a uma praia de nudismo, o protagonista conhece Tyler Durden, um extremista anárquico com grande carisma. Quando retorna para casa, vê que seu apartamento sofreu uma explosão e percebe-se sem rumo nem teto, o que o faz pedir abrigo para Tyler, que concorda com uma condição: “eu quero que você me bata tão forte quanto você puder”. Os dois lutam no estacionamento de um bar, angariando uma pequena plateia. Posteriormente, formam o Clube da Luta.

A história avança explorando o relacionamento entre o protagonista, Tyler e Marla, que formam uma espécie de triângulo amoroso fundamentado no desprezo mútuo. Ao mesmo tempo, Tyler evolui o Clube da Lua para o Projeto Desordem e Destruição, que tem como objetivo anarquizar a vida das autoridades e dos cidadãos “de bem”, acomodados em suas pacatas vidas. A trama leva os personagens a um clímax de conflitos internos e externos, com uma dinâmica impressionante de escrita pelo autor.

OPINIÃO: A escrita de Chuck Palahniuk é muito rápida, fluida e imersiva. Com frases curtas e verbos contundentes, o autor carrega o leitor (ou o conduz a pontapés, se preferir esta jocosa metáfora) durante esta trama intrincada. Mesmo eu que conheço o roteiro do filme não consegui largar o livro e pude refletir sobre os diversos questionamentos feitos pelo protagonista e por Tyler Durden. Desde perguntas sobre nosso lugar na sociedade até o que estamos fazendo com nosso pouco tempo de vida, as dúvidas essenciais apresentadas no livro trazem reflexões poderosas e, por vezes, nocivas ao status quo do leitor, o que não necessariamente é ruim, já que as mudanças sempre surgem das quebras de paradigmas.

Clube da Luta não oferece uma história com ganchos baratos e clichés para prender a atenção do leitor, mas sim uma trama bem construída que faz você, por vezes, sequer perceber que mudou o capítulo. O livro e o filme são quase idênticos, mas as linguagens são naturalmente diferentes e é muito bom poder redescobrir a história, desta vez em seu formato original.

NOTA PARA A LEITURA: 9/10. O pontinho perdido vai por conta da estrutura dos capítulos, que não fornece pontos de parada ao leitor. Por mais que a história seja boa, enquanto você lê a vida continua acontecendo e não ter intervalos significativos na leitura pode atrapalhar na absorção das cenas.

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

Lá pelos 70% do livro, o leitor se depara com a revelação principal da trama: o protagonista e Tyler Durden são a mesma pessoa. O problema de insônia do protagonista é, na verdade, um transtorno dissociativo de identidade que faz com que o protagonista viva o dia como ele mesmo e as noites como Tyler Durden, que “assume o corpo” toda vez que o protagonista vai dormir e esgota suas forças.

Ao descobrir a verdade, o protagonista tenta se matar (e, desta forma, matar Tyler, que está colocando a vida de Marla em risco). Enquanto isso, as equipes de anarquistas recrutadas por Tyler no Projeto Desordem e Destruição estão perpetrando diversos atos de vandalismo e ameaças a pessoas influentes e empresas, espalhando-se por todo o país e também internacionalmente.

O final passa pela aceitação do amor do protagonista por Marla e pela tentativa de suicídio, com sobrevivência do protagonista e uma suposta união das personalidades conflitantes, deixando no leitor a expectativa do que pode ter acontecido ao mundo com o deslanche do Projeto Desordem e Destruição, já que o protagonista termina internado numa clínica psiquiátrica, alheio ao que acontece na sociedade, exceto por pequenos fragmentos de informações trazidas por enfermeiros participantes das organizações fundadas por ele.

Ao término da leitura, o leitor pode se questionar se os fatos narrados, inclusive no fim da história, são verdadeiros ou apenas devaneios da mente perturbada do protagonista. Esta questão do narrador não-confiável modifica toda a leitura e traz dúvidas sobre se o que lemos no livro realmente ocorreu da forma como narrado ou se tudo não passava de interpretação enviesada sob a ótica corrompida do protagonista. Em uma extrapolação, tudo poderia ter se passado apenas em sua mente, embora acredito não ser esta a intenção do autor.

Da forma como é apresentada, a história traz uma reviravolta e transforma o narrador numa incógnita, deixando a história mais profunda e cheia de nuances para o leitor continuar imerso na trama por um bom tempo após fechar o livro.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: A Cor da Magia (Leituras 2020 – 1/20)

Em 2020 tenho como objetivo ler, pelo menos, 20 livros (não é nada cabalístico, é só uma meta pessoal com base na leitura de aproximadamente dois livros por mês), além de alguns livros técnicos de escrita e outros assuntos que não computarei na conta. Assim, pretendo resenhar estes 20 (ou, com sorte, mais) livros ao longo do ano aqui. Por isto, este é o post 1/20. Você pode acompanhar minhas leituras pelo Goodreads.

O primeiro livro que li este ano foi A cor da Magia, o primeiro volume do universo Discworld, de Terry Pratchett. Vindo de Pratchett (co-autor de Belas Maldições junto com Neil Gaiman), podemos esperar uma boa dose de risadas e situações esdrúxulas. E é exatamente isso que encontramos neste livro.

Primeiramente, cabe conceituar o que é o Discworld: um mundo plano (super atual em tempos de terraplanistas), sustentado nos ombros de quatro elefantes gigantescos que, por sua vez, se equilibram sobre o casco de uma enorme tartaruga, a grande A’Tuin. O Discworld é, além de improvável cientificamente, dotado de grande magia.

Logo no início da história temos os dois personagens principais, o mago fracassado Rincewind e o turista Duasflor, escapando de um incêndio causado por este último em uma das principais cidades do Discworld, Ankh-Morpork. A jornada desta improvável dupla é comandada (sem que eles saibam) por um jogo de tabuleiro controlado pelos deuses daquele mundo. Outros personagens recorrentes são o Morte (literalmente a morte e impressionantemente cativante) e o bárbaro Hrun, que sempre dá um jeito de escapar das situações mais improváveis sem grandes problemas, como só os heróis geralmente o fazem. Além disso, há a caixa mágica de Duasflor, um baú de viagem mágico dotado de centenas de pares de pernas que faz de tudo para proteger seu dono.

A história se desenrola entre situações absurdas e desfechos improváveis, coordenados pela mente habilidosa de Terry Pratchett, que confere um ar de humor a toda a história no melhor estilo Douglas Adams.

OPINIÃO: O único ponto negativo da história, talvez por ser um livro introdutório a um universo tão fantástico, é que A Cor da Magia acaba por vezes sendo maçante. As aventuras que se sucedem durante o livro tornam-se, por vezes, cansativas para o leitor. Há muita informação nas páginas que somente serão utilizadas em volumes futuros e que ficam “jogadas” durante a leitura, confundindo o leitor que quer avançar na leitura e se vê no meio de uma explicação sobre algum aspecto do mundo que é irrelevante para aquela trama específica.

Já nos pontos positivos, temos a construção de um mundo incrível e non-sense por excelência, baseado num mito hindu, mas adaptado para suportar as situações que o roteiro pede. O humor que permeia todo o livro é ótimo, quebrando as cenas de fuga, luta e heroísmo sem perder a cadência. Rincewind, o personagem através do qual enxergamos o mundo, é carismático e flerta com a figura do anti-herói, enquanto Duasflor é o recurso de roteiro que impele a história para a frente, sendo um turista (o único no Discworld) destemido, que acredita que nada de ruim acontecerá a ele.

É um ótimo livro, apesar da ressalva no início desta opinião, e fiquei motivado para ler mais algumas histórias deste incrível universo criado por Terry Pratchett.

NOTA PARA A LEITURA: 7/10.

Observação: Esta resenha, excepcionalmente, não terá a sessão de análise com spoilers, pois cada situação na história é diferente, quase desconexas entre si, e o livro termina com um gancho para o volume seguinte que este humilde resenhista ainda não teve a oportunidade de ler. Logo, dar informações sobre o final do livro aqui não acarretaria em nada para esta resenha além de, justamente, um spoiler gratuito.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: O Mundo de Sofia

O primeiro livro a ser resenhado neste espaço é “O Mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder, que, já adiantando parte da minha opinião, é um dos melhores (se não o melhor) livro que já li.

No livro, acompanhamos a história de Sofia Amundsen, uma garota norueguesa de 14 anos, filha de uma mãe protetora e um pai ausente que trabalha fora do país a maior parte do ano.

Quando Sofia começa a receber perguntas principiológicas pelo correio (“Quem é você?”, “De onde vem o mundo?”), sua existência começa a se entrelaçar com a de uma enigmática pessoa chamada Hilde. Ao mesmo tempo em que começa a receber um curso de filosofia pelo correio, vindo de um igualmente enigmático professor chamado Alberto, Sofia também passa a receber cartões postais de Albert Knag, o pai de Hilde.

Conforme o curso de filosofia avança, o leitor aprende sobre os principais pensadores da História ao passo que se entranha cada vez mais nos mistérios que conectam a vida de Sofia e de Hilde.

É aqui que paramos o resumo e seguimos para a opinião deste humilde resenhista. Caso você queira saber mais, após a opinião e a nota para a leitura haverá uma complementação da história com spoilers.

OPINIÃO: O Mundo de Sofia, conforme introduzido acima, é talvez o melhor livro que já li. Isso advém de dois motivos:

  1. A história é muito interessante, com uma trama engenhosa e escrita fluída;
  2. Se hoje eu gosto de filosofia, a culpa é deste livro. A forma como o curso é apresentado, em ordem cronológica mas com fácil didática, motiva o leitor (normalmente jovem) a aprender mais e questionar sempre os dogmas aos quais é submetido diariamente por uma sociedade que cada vez menos exige pensamento crítico.

A história de Sofia e de Hilde se complementam e deixam a trama intrincada, com o leitor querendo saber onde o autor está querendo chegar. Sofia é um ótimo personagem orelha, enquanto o professor de filosofia, Alberto, é muito carismático. Os mistérios do livro, como são apresentados, suprem qualquer cansaço que pode ser gerado pelo curso massivo de filosofia que é apresentado durante o livro.

Não se iludam. O Mundo de Sofia é, acima de tudo, um curso de filosofia disfarçado. Mas é disfarçado com maestria pelo autor e isso muda tudo. É leitura obrigatória para sairmos da caixinha. Quanto mais velho se lê o livro, mais as reflexões se tornam impactantes.

Já perdi a conta de quantas vezes li este livro e, mesmo sabendo do final, cada vez a leitura me traz aprendizados novos e questionamentos que nunca fiz sobre a história e sobre nossa própria realidade.

NOTA PARA A LEITURA: 10/10, sem dúvidas.

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

Após vários capítulos de curso de filosofia e coisas estranhas acontecendo com Sofia, com Hilde e seu pai cada vez mais deixando a história fantástica (literalmente) e non-sense, sendo que Albert (o pai de Hilde, não Alberto, o professor) chega mesmo a exercer o papel de antagonista na história, o leitor chega à revelação da trama: Sofia é, na verdade, a personagem de um livro escrito por Albert como presente para Hilde em seu aniversário de 15 anos.

Hilde, ao ler o livro, desenvolve forte empatia com Sofia e Alberto, tentando ajudá-los a sair das garras manipuladoras de seu pai, o autor da história. Estes eventos acontecem quando Sofia aprende sobre Berkeley, Kant e tantos outros filósofos que ousaram questionar suas próprias realidades. Não gosto de utilizar a palavra “genial” para evitar que perca o sentido, mas este livro é, ao menos para mim, genial neste aspecto: o leitor descobre junto com Sofia que está sendo manipulado por Albert (e por Jostein Gaarder, o verdadeiro autor do livro, também), mas não se sente traído, pois as pistas estavam lá desde o início da história, como no melhor suspense à la Agatha Christie.

A forma utilizada pelo autor (Gaarder) para permitir que Sofia e Alberto fujam das garras do pai de Hilde é fascinante. Durante uma festa, Alberto conta para os demais personagens do livro que eles são justamente personagens de um livro. As reações variam e o pai de Hilde fica focado em descrever um acidente envolvendo uma Mercedes nos arredores da festa, permitindo que Sofia e Alberto saiam debaixo de sua guarda por um instante (parecido, talvez, com a escapada de Eva e Adão pelas costas de Deus) e abandonem a história, tornando-se personagens renegados, já que não fazem mais parte de suas próprias histórias.

Mas a história não acaba aí. O final do livro eu deixo a cargo dos leitores interessados, pois mesmo após a revelação principal do roteiro, já contemplada nesta análise, o desfecho não deixa de nos surpreender e intrigar, como apenas os filósofos conseguem com seus questionamentos atemporais.

Por Rafael D’Abruzzo

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