Além das resenhas dos livros que estou lendo em 2020, estou analisando algumas obras que impactaram minha experiência como leitor. A primeira análise neste sentido foi do livro O Mundo de Sofia. Desta vez, a resenha é de uma obra bem mais recente e, de quebra, nacional.
As Águas Vivas Não Sabem de Si, da Aline Valek, é um livro espetacular. Nele, acompanhamos a história de Corina, uma mergulhadora profissional que está numa missão para testar um traje de mergulho para profundidades abissais numa estação submarina (Auris), já situada num nível bem abaixo da linha do mar.
Nesta estação, também estão outro mergulhador (cujo apelido é Arraia), um cientista americano cujas teses não são bem aceitas no mundo acadêmico (Martin) e seu assistente (Mauricio), além de Susana, que está encarregada de garantir a sobrevivência de todos na estação. Cada uma destas pessoas tem motivos (expressos e ocultos) para estarem no mesmo ambiente.
Martin deseja aproveitar a missão para estudar uma teoria sua sobre a comunicação no fundo do mar, acompanhado de perto por Mauricio. Esta relação com a vida marinha é o que move Corina em sua vida de mergulhadora e serve como contraponto para a narrativa que acompanha a perspectiva das criaturas marinhas em paralelo ao que acontece na estação de pesquisa.
A convivência entre os personagens gera discussões sobre a natureza humana, a solidão e reflexões sobre a sociedade calamitosa muitos metros acima de suas cabeças. Além disso, Corina carrega um segredo que pode colocar em risco a missão e sua própria vida.
OPINIÃO: As Águas Vivas Não Sabem de Si é impressionante. Não só o trabalho de pesquisa da Aline é memorável (contando em detalhes o ofício de mergulhador, a vida numa estação aquática e a biologia marinha), como também a narrativa da história surpreende. Quebrando totalmente a prática narrativa habitual, a autora desloca o protagonismo de alguns capítulos para as mais diversas criaturas marinhas: cachalotes, águas vivas, polvos e outras mais.
A vida de Corina é explorada em paralelo à vida marinha, mostrando que o ecossistema é mais sinérgico do que parece à primeira vista. Os capítulos que narram a vida subaquática são repletos de reflexões e perguntas filosóficas das criaturas que os protagonizam, sendo um deleite para os leitores mais detalhistas. Os pontos de vista são tão diversificados no livro que o leitor tem um sentimento de pertencimento àquele ambiente, como a própria Corina tem.
A sensação de ler este livro é agridoce; por um lado, aproveitamos a história magistralmente apresentada pela autora e, por outro, a angústia de uma vida efêmera e a solidão do isolamento (por vezes dentro de nós mesmos) assolam o leitor em cada capítulo de cada personagem, humano ou não. Solidão esta que é, ao menos ao meu ver, a temática central da história.
NOTA PARA A LEITURA:10/10.
Observação: Esta resenha não terá a sessão de análise com spoilers por dois motivos: 1) o livro é recente e integra o (infelizmente) semi-ignorado mercado literário nacional contemporâneo. Dar o final do livro aqui seria desestimular a leitura, o que é precisamente o oposto do objetivo deste site; e 2) a história evolui com uma sensibilidade invejável. A autora tem pleno domínio do texto e cada capítulo (sob a ótica humana ou não) é essencial para o final catártico da história. Traduzir em poucas palavras o final do livro seria impossível sem o sentimento que ele traz.
A conclusão da história é um soco no estômago (e outro na cara, um chute na costela… enfim, você termina no chão) e vai te deixar refletindo sobre a leitura durante muito, muito tempo.
Por Rafael D’Abruzzo