Literatura, resenhas de livros e dicas de leitura

Resenha: Vulgo Grace (Leituras 2020 – 9/20)

Mais de dois anos após assistir à série homônima na Netflix, li “Vulgo Grace”, da Margaret Atwood, a obra original que é objeto desta resenha.

Eu estava para ler este livro há um bom tempo, desde que o comprei após assistir à série, mas optei por deixar a história “sentar” na minha cabeça, o que significa que esqueci mais de 80% da história como geralmente acontece com minha memória ridiculamente curta. Pois bem, li o livro recentemente com “olhos quase novatos” e o resultado foi muito bom. Consegui me surpreender com a história e, embora me lembrasse de algumas cenas do seriado, o início e o final do livro continuaram sendo surpreendentes, então a leitura foi muito positiva.


O livro é um romance histórico que (re)conta a história do assassinato de Thomas Kinnear e Nancy Montgomery pelas mãos de James McDermott e Grace Marks. O crime realmente ocorreu em 1843 e é apresentado logo no começo, sem ser considerado um spoiler (já que não existe spoiler em História). James McDermott foi condenado e enforcado por assassinato e Grace Marks foi condenada à prisão perpétua por conta de sua idade à época do crime, tendo sido considerada nova demais para a pena capital.


O que este livro faz é trazer uma história onde a História tem lacunas. O que realmente pensava Grace Marks? Ela era de fato um demônio manipulador, como disse a mídia da época? Ou era apenas uma garota com medo de um assassino que a envolveu no crime sem seu consentimento? Era “esperta e sedutora como o diabo”, como alegou seu comparsa ou “quase idiota, analfabeta e ignorante”, como alegou seu advogado para comutar a pena de morte em prisão perpétua?


No livro, acompanhamos a perspectiva de Grace e de um médico/psiquiatra/psicólogo (à época, não havia muita distinção e os métodos eram inovadores), Dr. Simon Jordan, que se interessa pelo caso dela e busca entendê-lo pelo viés psicológico. Através de entrevistas com a própria Grace na prisão e coletando dados sobre o crime, o Dr. Jordan busca desvendar quem, de fato, é Grace Marks.

OPINIÃO:

O livro é muito cativante. A personagem de Grace, como apresentado pela autora, é encantadora pois parece alternadamente inocente e culpada aos olhos do leitor, conforme a história avança. Existe uma dubiedade do início ao fim e isso contribui muito para uma trama ser formada onde já houve inclusive julgamento e condenação.


As personagens são muito bem elaboradas, especialmente a de Grace do Dr. Jordan, mas mesmo os personagens coadjuvantes são, em sua maioria, aprofundados e palpáveis. Assim como em “O Conto da Aia”, Margaret Atwood fez um excelente trabalho de caracterização e envolve o leitor que passa a se importar com os personagens que, inclusive, já viveram e morreram na vida real.


As descrições do livro são muito detalhadas para a época em que se passa a história. A autora fez um trabalho pesado de pesquisa em documentos históricos e o resultado é uma ambientação completa que ajuda o leitor a “escapar” para dentro do livro, vivendo parcialmente aquela época em que se passa a história. É um ótimo exemplo do escapismo literário que batiza este humilde blog.


Como ponto negativo, o livro é longo demais. São 509 páginas que poderiam facilmente ser 400. Algumas subtramas estão “sobrando” na história e poderiam facilmente ser cortadas sem prejuízo para o resultado final. Há parágrafos de devaneios igualmente longos que, após determinado momento na história, tornam-se maçantes. Por mais que a história seja ótima e os personagens precisem ser esmiuçados psicologicamente para entendermos suas nuances, o livro peca neste aspecto. Não tira o brilho da história contada, mas sim do livro em si, que poderia ser mais curto.


Ainda assim, recomendo muito a leitura do livro. Talvez os pontos que eu tenha achado cansativos sejam justamente os pontos que outro leitor gostará. Esta é a magia da literatura: não há um consenso do que é bom ou ruim em determinada técnica narrativa.


A história do livro é muito boa, a ambientação é incrível e a autora leva o leitor até o final, embora com alguma resistência, a saber o que se passou de verdade naquela história. Com reflexões sobre os costumes da época, o machismo e os preconceitos, “Vulgo Grace” é uma leitura interessante nesta época caótica em que vivemos.

NOTA PARA A LEITURA: 8/10

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

Conforme já apontado antes, não existem spoilers na História. O fato de que Grace e McDermott foram julgados e condenados, que os assassinatos realmente ocorreram e que Grace foi perdoada e solta após quase 30 anos de encarceramento são todos dados históricos.


O que o livro nos conta são as histórias de Grace antes, durante e depois do encarceramento. Seu passado sofrido de imigrante, os abusos do pai alcoólatra, a perda da melhor amiga pouco antes de assumir o trabalho na casa do Sr. Kinnear, os assédios sofridos, sexuais e morais, por diversas pessoas. Enfim, a história do livro suplanta as lacunas da História.


Quanto ao segundo “personagem principal”, Dr. Jordan, o mesmo é inteiramente ficcional e representa uma das correntes médicas da época, que buscava tratar dos insanos e loucos como pessoas e não como animais. Ele se envolve com Grace e termina apaixonado por ela, embora não tenha se declarado em momento algum. Sua vida é uma sucessão de fracassos e não é dado ao romantismo. Fica claro para o leitor que seu envolvimento com Grace acaba sendo mais uma obsessão profissional (que ele confunde por paixão pessoal), fruto de uma mente tão perturbada quanto a da própria Grace. Na história do Dr. Jordan, inclusive, é onde se encontram as passagens mais tediosas do livro. De toda forma, é um personagem interessante, embora “aprofundado demais”.


Desta forma, falar em “spoilers” neste livro é bastante complexo, pois o final da história já é entregue no começo ou a qualquer um que procure a história do crime na internet. O que se vê é o crescimento dos personagens e como eles se tornam importantes para o leitor, conforme a leitura avança.

Por Rafael D’Abruzzo

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2 Comments

  1. Assisti a série na Netflix e amei, recentemente baixei o ebook e já estou ansiosa para ler.♥

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