Minha quinta leitura do ano foi Coração (no original japonês: Kokoro), de Natsume Sōseki.

A história do livro gira em torno de dois personagens principais: o Professor (Sensei) e o Eu, personagem indefinido e sem características físicas, que tem o condão de deixar o leitor em primeiro plano para o contato com o personagem mais interessante do livro, o Professor.
No começo do livro, o Eu está de férias escolares numa área praiana quando conhece o Professor, figura misteriosa cujas ações chamam a atenção por destoarem dos costumes sociais padrões esperados. Ele é um misantropo numa sociedade que valoriza muito mais o coletivo do que o indivíduo.
Ao longo do livro, Eu desenvolve uma fascinação quase obsessiva pelo Professor. Ambos desenvolvem uma amizade baseada num contato praticamente diário, enquanto Eu tenta desvendar os mistérios do passado escondido do professor.
Em paralelo à nova amizade com o Professor, a vida pessoal de Eu torna-se mais conturbada com o desenvolvimento de uma doença incurável de seu pai, causando sua ida à casa da família no interior, afastando-se de Tóquio e da vida moderna junto ao professor.
Graças às informações trazidas para mim pela minha amiga que me emprestou este livro (muito difícil de achar em português, inclusive), estudiosa da cultura japonesa e oriental em geral, entendi que o autor atribuiu aos personagens deste livro o espírito da época no Japão. O Professor é a transição do velho Japão feudal para o Japão moderno, por isso se sente deslocado da sociedade como está. Há diversos paralelos como este no livro e ler sob esta perspectiva traz ainda mais profundidade à trama.
OPINIÃO: Kokoro é, sem dúvida, um dos livros mais tristes que já li. Talvez seja o mais triste. E eu achava que o livro que eu escrevi era pra baixo. Ledo engano, comparando com este.
Triste e profundo. Numa trama simples, Natsume Sōseki toca no nervo do leitor com temas como culpa, deslocamento social, solidão e ansiedade. Há muita profundidade na história, não só pela ressignificação ideológica dos personagens, mas pelo modo poético como a história é contada.
Há na leitura, ao longo dos três grandes capítulos do livro, um movimento de distanciamento do Eu. No começo do primeiro capítulo, ele é a figura principal, sendo aos poucos trocado pelo Professor. No segundo capítulo há uma reaproximação ao Eu, logo colocada de lado pelas preocupações com a família e o Professor, agora longe. Por fim, o terceiro capítulo é inteiramente narrado pelo Professor, inexistindo a figura do Eu, totalmente subjugado por uma personagem mais cativante.
Do mesmo modo como em nossas vidas acabamos, às vezes, por deixar de ter opiniões próprias em face de opiniões e dogmas de outros, também no livro vemos esta aniquilação das vontade própria, conforme o Eu se anula perante o Outro.
Um livro denso, complexo e delicado, como flores lindas, porém venenosas. Kokoro te leva para dentro de uma história triste com tanta força que você pode ser afogar.
Cuidado com esta leitura se estiver numa fase difícil da vida. Se você estiver numa fase boa, quando acabar o livro já não estará mais nela. Experiência própria.
NOTA PARA A LEITURA: 10/10.
Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.
Ao longo de toda a história, Eu tenta descobrir sobre o passado do Professor. Sua vida vai acontecendo durante esta obsessão e ele não percebe que está ausente de sua própria história.
Quando o pai de Eu adoece e ele precisa ir para a casa da família no interior para dar apoio, acaba distanciando-se do Professor, que havia prometido contar sua história algum dia, antes de morrer.
A doença do pai de Eu avança e ele recebe uma longa carta do Professor. Trata-se de um testamento, na qual ele revela sua história como responsável pelo suicídio de seu melhor amigo, o que o assombra desde então, tirando sua vontade de viver.
Por fim, com a morte do Imperador Meiji, o Professor sente que finalmente é sua hora e também se mata, deixando os detalhes de seu passado na carta.
Toda a história do passado do Professor é o que confere a densidade da leitura. Contar aqui seria um desfavor à sua leitura, caso algum dia vocês se aventurem pelas tristes veredas de Kokoro.
Por Rafael D’Abruzzo
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