Literatura, resenhas de livros e dicas de leitura

Month: February 2020

Resenha: Blade Runner / Androides sonham com ovelhas elétricas? (Leituras 2020 – 4/20)

Neste post vou dar minhas impressões sobre o livro “Androides sonham com ovelhas elétricas?”, de Philip K. Dick. Ou, como ficou amplamente conhecido por conta do filme de Ridley Scott: Blade Runner.

Inicialmente, um aviso para quem viu o filme: a história do filme e do livro são quase totalmente diferentes. Apenas foram utilizados os nomes dos personagens e a investigação principal. Até mesmo a atmosfera do livro é diferente da do filme. Entendo isso como algo positivo, pois você pode absorver histórias diferentes e comparar suas impressões.

No livro, acompanhamos a história de Rick Deckard, um caçador de recompensas da polícia de São Francisco num futuro distópico no qual a Terra está parcialmente inabitável por ter sido super explorada, com a humanidade migrando para outros planetas e restando, na Terra, apenas os indivíduos marginalizados ou de baixo QI, afetados pela radiação do planeta, oriunda de uma guerra nuclear.

Neste ambiente, os poucos habitantes da terra buscam ser donos de animais verdadeiros, o que é símbolo de status num planeta cuja vida animal foi praticamente extinta, e os que não têm recursos para tanto adquirem versões elétricas e artificiais, réplicas perfeitas e quase indistinguíveis dos animais originais a ponto de parecerem, de fato, vivas. Deckard, no caso, é dono de uma ovelha elétrica (daí o nome do livro).

A trama do livro envolve uma crise moral do protagonistas, que se vê questionando seu trabalho pela primeira vez. Seu trabalho consiste em “aposentar” (ou matar, se estivessem vivos) androides que estão ilegalmente na Terra. Deckard sempre executou seu trabalho sem questionamentos até ser obrigado a caçar um grupo de androides Nexus-6 de última geração, chefiado por Roy Batty, vendo-se numa trama envolvendo uma amante androide e inimigos que parecem tão humanos quanto ele próprio.

O que permite que o protagonista distinga os androides dos humanos é que apenas as pessoas têm empatia e, assim, os androides falham no teste de empatia Voight-Kampff. Empatia, aliás, é um dos principais pontos do livro, havendo inclusive uma religião voltada para isso, o Mercerismo, que gira em torno de Wilbur Mercer. Há uma caixa de empatia, uma espécie de vídeo game na qual as pessoas podem se sintonizar com essa entidade chamada Mercer que está sempre subindo uma montanha e sendo apedrejado, possibilitando aos adeptos da caixa sentirem as dores de Mercer e até mesmo serem machucados de verdade durante a experiência.

Nem os animais elétricos e suas implicações sociais, nem o Mercerismo e nem mesmo a esposa de Deckard estão na trama do filme. Foi uma surpresa interessante ler um livro e perceber um universo muito além do filme, mas complementar.

OPINIÃO: Gosto muito de Blade Runner, o filme, e isso talvez tenha influenciado minha opinião, pois me senti forçado a gostar do livro desde o começo. É, de fato, um ótimo livro, mas senti falta do peso da atmosfera do filme com o qual estou acostumado.

Não obstante, gostei muito do livro. Ele traz questionamentos muito diferentes do filme, em diversas esferas. Enquanto a preocupação principal do filme é mostrar que humanos e androides não são tão diferentes, o livro se aprofunda muito mais no que é de fato ser humano, especialmente numa sociedade apodrecida e cheia de impressões falsas, tão artificiais como a ovelha de Deckard. No livro, também, encontramos reflexões sobre consumismo e religião, trazendo nuances que inserem o leitor na obra com mais profundidade.

Recomendo a leitura do livro, é a melhor obra de Philip K. Dick que já li.

NOTA PARA A LEITURA: 9/10.

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

O livro inicia com Deckard recebendo a missão de caçar os androides fugitivos. Para isso, precisa conversar com representantes da empresa que os cria e, assim, conhece Rachel, uma androide pela qual se apaixona, embora seja casado e questione se é possível ter sentimentos por algo que não está vivo, propriamente dito. Pouco antes do desfecho do livro, inclusive, ele chega a dormir com ela, trazendo um dos diálogos mais profundos do livro, no qual Rachel revela que já dormiu com diversos caçadores de androides e sua função é justamente desestabilizar tais profissionais emocionalmente.

Deckard “aposenta” os androides fugitivos um a um, inclusive uma sósia de Rachel, questionando cada vez mais seu trabalho e pensando no que fazer com o dinheiro ganho das recompensas. Após aposentar 3 dos 6 androides, consegue dinheiro para comprar uma cabra de verdade, trazendo uma enorme alegria à sua vida, mas por pouco tempo, uma vez que a cabra é morta por Rachel quando ele decide continuar sua caçada aos androides restantes mesmo após dormir com ela.

Após destruir todos os androides, Deckard busca se isolar no Oregon, região dos EUA totalmente devastada pela guerra nuclear. Lá, ele encontra um sapo que julga ser de verdade e leva o animal para casa. Chegando em casa, sua esposa mostra que o sapo é elétrico, devolvendo Deckard para o status inicial do livro: sem dinheiro e dono de um animal postiço, fechando o ciclo de mediocridade que permeia a vida do personagem.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: O Sal das Lágrimas (Leituras 2020 – 3/20)

A terceira leitura do ano foi O Sal das Lágrimas, de Ruta Sepetys.

O livro é ambientado nos momentos finais da segunda guerra mundial e foca num grupo heterogêneo que busca a própria sobrevivência em território alemão prestes a ser invadido pela Rússia.

A autora é filha de um lituano refugiado e, além das memórias familiares, fez um pesado trabalho de pesquisa histórica para escrever o livro que trata de um acontecimento real: o afundamento, pelos russos, de um navio alemão chamado Wilhelm Gustloff no início de 1945, vitimando mais de 9 mil refugiados, inclusive mulheres e crianças. É o pior desastre marítimo da história, superando em seis vezes o número de mortos em relação ao Titanic.

O livro trata da história de quatro jovens que têm o destino entrelaçado em algum momento do livro. Joana é uma enfermeira lituana que foi aceita na Alemanha nazista por uma das políticas hitleristas, mas foi obrigada a deixar a família para trás e tem um passado trágico. Florian é um soldado prussiano que finge estar a serviço do Reich, mas está numa missão pessoal contra o alto escalão nazista. Emília é uma adolescente polonesa que está ilegal em território nazista e tem um segredo terrível que carrega consigo. Por fim, Alfred é um marinheiro do mais baixo escalão nazista, narcisista e com sonhos de grandeza após uma vida de humilhações por não ser considerado exatamente o arquétipo da juventude hitlerista. Sua história é contada através principalmente de cartas nas quais interage com uma jovem alemã vizinha de sua família, contando seus inventados feitos de guerra enquanto limpa banheiros no navio.

Os três primeiros personagens encontram Alfred na metade do livro, mais ou menos, e acabam dependendo dele para embarcarem e se manterem no navio para fugir.

Uma história de luta, tragédia e dor, contada com muito sentimento pela autora. Vale a leitura, sem dúvida, ainda mais por se tratar de um livro de segunda guerra mundial sob uma ótica diferente da de sempre.

OPINIÃO: Gostei muito do livro, achei o ponto de vista dos protagonistas diversificados e complementares entre si.

Cada um é assombrado por algum sentimento conflitante e tem um objetivo definido. As motivações são compreensíveis e factíveis, embora eu entenda que a carga romântica colocada na história é desnecessária e até traduz um contrassenso para um momento tão difícil da vida dos personagens. Senti que há um romance forçado na trama e isso atrapalha um pouco a experiência.

Fora isso, a história é ótima, faz você refletir sobre “o outro lado da guerra” e as cenas de violência causam impacto no leitor, já que são apresentadas “de repente”, como se espera de uma guerra, em que não há anúncio prévio de um bombardeio, por exemplo.

A autora apresenta sentimentos diversos em seus personagens e lida muito bem com as consequências que cada escolha traz ao grupo. Muito bem escrito.

NOTA PARA A LEITURA: 8/10

Sem mais delongas, iniciamos a análise do final da obra com os SPOILERS. Siga por sua conta e risco.

Com o avanço da história, descobrimos os segredos dos protagonistas: Joana abandonou a família e deixou a irmã para morrer. Florian está traindo o Reich contrabandeando uma obra de arte cobiçada por Hitler, a quem odeia já que seu pai foi morto pela polícia nazista por ter participado do atentado da operação valquiria. Emília foi estuprada por soldados russos após ser entregue por uma mãe nazista para proteger a própria filha. Alfred é fraco, mimado e denunciou sua amada, para quem escreve, causando sua desgraça.

Quando finalmente o embarque no navio começa, Alfred busca seu reconhecimento ajudando Florian, que se apresenta como um soldado em missão especial pelo alto escalão nazista. Joana é recrutada como enfermeira e ajuda no parto de Emília.

Quando o navio é atacado, Emília sucumbe, mas o bebê é salvo por Florian. Alfred entra num surto psicótico e morre de uma forma patética, como foi sua vida até então. Florian e Joana constituem uma família (o romance forçado do livro), criando a filha de Emília.

O livro acaba com uma carta de uma mulher a Florian, tornando pública a história de Emília e daquele grupo que sobreviveu ao maior desastre marítimo de todos os tempos.

Por Rafael D’Abruzzo

Resenha: As Águas Vivas Não Sabem de Si

Além das resenhas dos livros que estou lendo em 2020, estou analisando algumas obras que impactaram minha experiência como leitor. A primeira análise neste sentido foi do livro O Mundo de Sofia. Desta vez, a resenha é de uma obra bem mais recente e, de quebra, nacional.

As Águas Vivas Não Sabem de Si, da Aline Valek, é um livro espetacular. Nele, acompanhamos a história de Corina, uma mergulhadora profissional que está numa missão para testar um traje de mergulho para profundidades abissais numa estação submarina (Auris), já situada num nível bem abaixo da linha do mar.

Nesta estação, também estão outro mergulhador (cujo apelido é Arraia), um cientista americano cujas teses não são bem aceitas no mundo acadêmico (Martin) e seu assistente (Mauricio), além de Susana, que está encarregada de garantir a sobrevivência de todos na estação. Cada uma destas pessoas tem motivos (expressos e ocultos) para estarem no mesmo ambiente.

Martin deseja aproveitar a missão para estudar uma teoria sua sobre a comunicação no fundo do mar, acompanhado de perto por Mauricio. Esta relação com a vida marinha é o que move Corina em sua vida de mergulhadora e serve como contraponto para a narrativa que acompanha a perspectiva das criaturas marinhas em paralelo ao que acontece na estação de pesquisa.

A convivência entre os personagens gera discussões sobre a natureza humana, a solidão e reflexões sobre a sociedade calamitosa muitos metros acima de suas cabeças. Além disso, Corina carrega um segredo que pode colocar em risco a missão e sua própria vida.

OPINIÃO: As Águas Vivas Não Sabem de Si é impressionante. Não só o trabalho de pesquisa da Aline é memorável (contando em detalhes o ofício de mergulhador, a vida numa estação aquática e a biologia marinha), como também a narrativa da história surpreende. Quebrando totalmente a prática narrativa habitual, a autora desloca o protagonismo de alguns capítulos para as mais diversas criaturas marinhas: cachalotes, águas vivas, polvos e outras mais.

A vida de Corina é explorada em paralelo à vida marinha, mostrando que o ecossistema é mais sinérgico do que parece à primeira vista. Os capítulos que narram a vida subaquática são repletos de reflexões e perguntas filosóficas das criaturas que os protagonizam, sendo um deleite para os leitores mais detalhistas. Os pontos de vista são tão diversificados no livro que o leitor tem um sentimento de pertencimento àquele ambiente, como a própria Corina tem.

A sensação de ler este livro é agridoce; por um lado, aproveitamos a história magistralmente apresentada pela autora e, por outro, a angústia de uma vida efêmera e a solidão do isolamento (por vezes dentro de nós mesmos) assolam o leitor em cada capítulo de cada personagem, humano ou não. Solidão esta que é, ao menos ao meu ver, a temática central da história.

NOTA PARA A LEITURA:10/10.

Observação: Esta resenha não terá a sessão de análise com spoilers por dois motivos: 1) o livro é recente e integra o (infelizmente) semi-ignorado mercado literário nacional contemporâneo. Dar o final do livro aqui seria desestimular a leitura, o que é precisamente o oposto do objetivo deste site; e 2) a história evolui com uma sensibilidade invejável. A autora tem pleno domínio do texto e cada capítulo (sob a ótica humana ou não) é essencial para o final catártico da história. Traduzir em poucas palavras o final do livro seria impossível sem o sentimento que ele traz.

A conclusão da história é um soco no estômago (e outro na cara, um chute na costela… enfim, você termina no chão) e vai te deixar refletindo sobre a leitura durante muito, muito tempo.

Por Rafael D’Abruzzo

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